Andávamos atrás dele desde finais do ano passado, quando soubemos do disco a solo. Há algumas semanas ele esteve cá, passeou por Lisboa e Porto mas, raios, escapou-se-nos entre os dedos. Agora, obra do acaso, foi ele que nos encontrou. Conversámos com Rodrigo Amarante ao telefone, ligação Los Angeles-Lisboa, e por momentos tentámos entrar na mente deste genial criador. Depois de discos brilhantes com Los Hermanos e Little Joy, Amarante lançou-se por conta própria numa “Cavalgada Perfeita”!
Altamont: Cavalo, é o teu primeiro disco a solo. É um disco de solidão?
Rodrigo Amarante: Eu não entendo o que seria um disco de solidão. O disco foi escrito numa espécie de exílio em que eu me coloquei. Não foi uma coisa que eu inventei mas que me apareceu, uma sugestão do acaso, que foi sair do Brasil e vir para Los Angeles e me separar do meu ambiente, da minha terra, dos meus amigos e de tudo. E, com isso, apareceu-me uma oportunidade de ouro, porque com isso eu pude recuperar a minha ascendência, descobrir quais as minhas saudades e entrar em contacto com a ideia que tinha de mim mesmo, de quem eu sou. E, por outro lado, colocar à prova a minha arte, a minha música, as minhas palavras. Então foi um disco escrito nesse contexto, buscando em mim coisas que talvez estivessem escondidas ou reprimidas ou o que quer que seja, mas eu não acho que por isso se torne um disco de solidão. Mas é um disco pessoal, onde eu trato de coisas que são profundas em mim, é um disco feito por uma pessoa só, então talvez por isso seja, mas eu nunca… o que você entende do disco é uma coisa que não tem controlo, que graças a Deus, quanto mais amplo melhor, mas nunca foi minha intenção fazer um disco triste ou de solidão, nada assim.
E a sonoridade é meio triste, meio alegre – mas toda essa melancolia é posta com uma beleza extrema. Como é que equilibras isso?
Olha, não sei.. Eu nunca tenho a intenção de causar uma determinada emoção, ou de levar a um determinado pensamento, ou que as músicas tenham alguma resposta. Porque eu acho que, se uma obra tem uma resposta, então ela é um enigma, e o enigma não é uma coisa que me interesse, justamente por isso – porque existe uma resposta certa e outras respostas erradas. Na escrita, o que eu tento fazer é dar alguma coisa que sirva a alguém. Eu digo sirva no sentido de: eu imagino que arte, Arte, deve servir como um espelho, um espelho imprevisível que vai reflectir para você o seu olhar, ou seja, que sirva como um instrumento de descoberta de você sobre si próprio, sobre a sua visão do mundo, o que quer que seja. E claro que parece uma coisa assim… talvez um pouco ambiciosa, já que o que eu faço é apenas música, são apenas canções, mas… eu digo isso porque quando eu escrevo eu tento tratar de emoções reais, emoções humanas, as minhas. Então, o que eu quero no fim das contas é conseguir contar a história de outra pessoa através da minha, ou seja, conseguir fazer funcionar esse espelho. Então, dessa forma, eu não estou interessado numa música tipo “esta é uma música triste e o meu objectivo é fazer a pessoa ficar triste, esta outra é uma música alegre…” Quer dizer, há leveza também nas músicas que são mais melancólicas. Há uma determinada alegria em “Irene”, por exemplo, que é purgar essa… tentar entrar em contacto com essa memória que nunca se apaga. Ou talvez exista uma coisa super pesada em “Hourglass”, que é aparentemente uma música mais leve e mais movimentada, mas ali há também outras partes. Portanto, a única coisa que eu posso dizer da minha intenção com esta escrita, é que seja ampla, que haja diferentes possibilidades para cada ideia… mas aí, eu só vou saber se funciona ouvindo as pessoas dizer o que acharam.
E em relação ao título do disco. Não sei como é no Brasil, mas cá “cavalo” também é o nome de rua de heroína. Houve alguma ligação neste sentido, ou este Cavalo é só o animal?
Não não, no Brasil a gente não chama a heroína de cavalo, e no meu caso isso não tem nada a ver. Mas o motivo para eu chamar Cavalo ao disco é o seguinte – quer dizer, existem várias faces para isso, porque como me propus a pensar nisto, acabei por desenvolver uma ideia mais abrangente… mas vou tentar ser o mais breve possível.
Quando me isolei para escrever este disco e experimentei pela primeira vez não ter um interlocutor para espelhar as minhas ideias, senti a necessidade de criar esse interlocutor em mim, e percebi que quando escrevo há, em mim, dois. Como se fossem dois lados de uma mesma entidade, ou seja, um é o lado passional, o lado que ama o processo, uma entidade que que não tem nenhum compromisso com concretizar nada, eu sento-me ao piano toco uma sequência de acordes de uma melodia e penso “que bonito”; ou pego em papel e escrevo uma ideia pela metade, “oh, esta ideia é interessante”, e sigo, quer dizer, é só a pulsão criativa.
O outro lado é o lado mais racional, que tem a função de perceber – dessas pulsões que vêm do outro lado – o que é bom e o que não é bom, e o que deve ser trabalhado, pensado, revisitado, ensaiado. Então é como se fosse um que disciplina o outro, ou seja, esse que é disciplinado é quem gera a matéria prima, então é como se fosse o cavalo e o cavaleiro. E tal como o cavalo e o cavaleiro, existe uma espécie de simbiose que acontece com, digamos assim, a cavalgada perfeita, onde em dado momento o cavalo se torna o guia e o cavaleiro é que é levado pelo cavalo. Então tornou-se numa espécie de utopia de escrita, conseguir não usar as rédeas, como na cavalgada perfeita, combinar e casar essas duas pulsões, não perceber mais a distinção entre uma e outra.
Agora, uma outra dimensão deste nome, que tem que ver com o Brasil, é que nas religiões afro-brasileiras, o candomblé e a umbanda, e até no espirtismo também – a gente diz que Cavalo é aquele que recebe o espírito, ou o Orixá, ou a entidade. Então, cavalo é o veículo. E simboliza isso mesmo, uma ponte entre o mundo material e imaterial, e isso amplia uma outra dimensão: se você acredita que seja possível, que exista uma entidade externa que possa ocupar um corpo físico, então você entende que o cavalo é o veículo entre esses dois mundos. Mas se você não acredita em nada disso, entende que essa entidade é na verdade uma extensão dessa pessoa física, então também funciona porque essa parte é de certa forma externa ao ego dessa entidade física. Então, quer dizer, eu também estou tratando disso, eu mesmo não sei que forças me influenciam na minha escrita, e interessa-me investigar.
Eu podia continuar esse papo, mas a ideia do Cavalo é esta – ao mesmo tempo veículo e veiculador, cúmplice inventado da minha viagem.
Ao falares disto tudo, estavam a surgir-me imensas imagens, mas tu optaste por pôr, na capa do disco, apenas letras. Porquê?
Primeiro porque, se o nome do disco é Cavalo, eu já te dei a imagem e esse é um ponto que tenho tentado fazer na minha escrita desde o início. Eu não preciso de redundar essa ideia ou de te dar algo que faça ancorar ou sentir seguro do que é que essa ideia quer dizer ou onde quer levar. Eu já te dei a imagem, ela está na tua cabeça e essa imagem vai-se transformando à medida que que vais entrando com contacto com o disco. Então, este é um motivo que eu acho forte para não haver uma imagem na capa.
Por outro lado, a feitura deste disco foi para mim um exercício de descobrir… quando eu comeceu a escrever eu não sabia muito bem o que é que eu ia dizer, mas o processo de descobrir isso foi também o processo de querer eliminar o supérfluo. Segui o conselho de Carlos Drummond de Andrade, em me livrar dos adjectivos. Carlos Drummond de Andrade disse que poesia é a arte de se livrar dos adjectivos, e isso foi uma coisa que me impressionou quando ouvi, porque eu era adolescente e estava a escrever poesia e na época eu imaginava que poesia era a arte de qualificar as coisas, duma forma particular. Mas entendi que não. O espaço que é deixado na escrita, ou em qualquer forma de arte, é fundamental porque é lá que esse espelho imprevisível que eu tento descrever funciona. A descrição mais interessante de uma pessoa ou de um lugar não tem a ver com a precisão dessa descrição nem com a quantidade de elementos que se descreve, e sim com a escolha exacta do elemento que vai te levar a imaginar o resto. Então, no disco, nos arranjos e nas letras, eu tentei me livrar de tudo o que fosse direcção exagerada. Tentei deixar só os elementos que fossem servir como convite para essa imaginação, como uma espécie de véu que, por cobrir, termina por seduzir mais do que a nudez total. Às vezes é mais sedutor uma mulher de belos olhos com um véu do que uma mulher de cara nua, talvez seja um tesão maior imaginar o que há por trás do véu. E então, nos arranjos também, eu fui tirando os instrumentos, tentando não preencher só porque a gente imagina “ah uma música tem de ter baixo bateria guitarra não sei quê” – mas talvez esta música não precise de ter baixo, como muitas não têm, e vai por aí.
Na escrita isso também aconteceu, então a capa acabou por ser um reflexo disso. E nesse exercício de procurar essa imagem eu acabei por me apaixonar pela imagem da capa, que é a imagem de uma página. E a página é o quê? É a possibilidade. Você enxerga a página, você entende aquilo como uma página, mas para saber o que há ali você tem que entrar. Não vai conseguir, só passando os olhos, ver o que há ali, é preciso parar e entrar. E então, é também uma resposta ao mundo de hoje, onde há uma escalada de poluição visual, de gritaria de volume… resolvi dar um passo atrás, não ter uma capa ou ter uma “não-capa”, e sugeri uma pausa, sugeri envolvimento. Porque eu escrevi para as pessoas que se interessam.
Em breve regressas a Portugal, para concertos em Lisboa e no Porto. Como vão ser?
Desta vez eu venho com a minha banda e vou tocar o disco inteiro, o mais próximo das gravações possível. Devo tocar também outras músicas novas ou outras que não são conhecidas, que escrevi nestes últimos tempos, ou que escrevi na época do disco mas acabaram por não ir para o disco.
Mas fico muito feliz… de cada vez que volto a Portugal é uma alegria total. Estive no Porto há pouco tempo, a fazer um videoclip – que eu sempre quis fazer em Portugal – para a música “Tardei”, e cada vez é uma alegria, é uma experiência diferente, porque nós falamos a mesma língua e eu fico super interessado em ver o que vai acontecer com os meus versos em português. Alegra-me poder ir, conhecer essas pessoas, as pessoas que ouviram o disco e lhes tocou de alguma forma. Portanto, para mim, tem a ver com isso, de ir e conhecer pessoalmente essas pessoas, por mais que eu talvez não possa apertar a mão de todas elas, mas ao menos estar no mesmo espaço e poder cantar e sentir a ressonância aí.
Para terminar: Little Joy. Lançaram só um disco e deixaram muita água na boca, há planos para o futuro dessa banda?
No momento não. Todos queremos fazer um outro disco, mas o tempo ainda não chegou.. mas certamente temos vontade.
(Concluímos, portanto, que são imperdíveis os concertos de Rodrigo Amarante em Portugal – 4 de Junho na ZDB em Lisboa; 5 de Junho no Optimus Primavera Sound no Porto)