Em vésperas de tocar no Vodafone Mexefest, Joana Barra Vaz contou ao Altamont como seu deu este mergulho de cabeça no mundo das canções.
Cineasta de formação, estreou-se em 2012 com Passeio Pelo Trilho, numa altura em que assinava como f l u m e. Convenceram-na a usar o nome próprio e é já enquanto Joana Barra Vaz que edita o novo Mergulho em Loba, belíssimo registo de uma época, disfarçado com sons que nos transportam para finais de tarde de Verão, barco à vela, algures entre a costa alentejana e São Tomé. Em vésperas de tocar no Vodafone Mexefest (concerto no dia 26/11, às 20h, na Casa do Alentejo), Joana Barra Vaz contou ao Altamont como seu deu este mergulho de cabeça no mundo das canções.
Este disco é o segundo capítulo numa trilogia. Fala-nos sobre o conceito dessa história tripartida.
Na verdade o conceito surgiu das canções em si, não foi nada pré pensado em relação à composição, muito pelo contrário. Quando o Bernardo Barata e o José de Castro me tentaram convencer a gravar canções, que eu não estava nada convencida, eu ainda andava a acabar o documentário Meu Caro Amigo Chico, e tinha escolhido como profissão o Cinema. Mas eu tinha muitas canções e quando o Bernardo me desafiou a gravá-las, disse-me para escolher um lote – tinha cerca de 30 canções. E quando separo essas canções e faço uma selecção, reparo que há ali 3 cenários distintos. As memórias de infância, eu cresci junto ao mar mas as férias eram passadas no campo, e havia ali um grupo de canções muito ingénuo e que tinha imagens geográficas muito campestres – e chamei-lhe Passeio Pelo Trilho, que tinha a ver com essa ingenuidade de criança, de andar a descobrir caminhos nas florestas. Mas depois havia três canções dessas antigas, a “Suspensão”, a “Demora” e a “Marinheiro”, que já eram do cenário do mar, portanto eu já sabia que existia esse cenário, não sabia se era o terceiro ou o segundo disco, mas como eu não levava aquilo muito a sério não me preocupei muito. Preocupava-me em que aquele grupo de canções fizesse sentido. Mais tarde, quando eu entro neste disco, já depois da estreia do “Meu Caro Amigo Chico”, eu achava que ia fazer uma curta metragem, não queria misturar música e cinema. O documentário foi trabalhoso, queria fazer uma coisa mais modesta, uma coisa que se filma em duas semanas. Mas depois fui começando a pensar nesses mitos do Mar, e na altura andava a ler a “Odisseia” e estava um bocado chateada de a Penélope não ter mais cenas. Achava incrível aquela perserverança e aquela ideia da colcha, de ela ser uma colcha e desfazer a colcha para não se casar com ninguém e não entregar a cidade. E eu achava, nós andamos aqui a ver as aventuras de um homem perdido no mar, as mulheres ou são super sedutoras ou são más ou são muito ingénuas, e há aqui um mulherão no meio desta história, à qual nos só vamos em poucas cenas. E depois há aqueles mitos muito bonitos, dos marinheiros, e há muitas histórias da nossa relação com o Mar, os Descobrimentos, etc. E depois nós estávamos a entrar numa fase do país tenebrosa, politicamente, e eu de repente comecei a perceber o que é que havia disto tudo. Mas eu genuinamente achava que isso ia para um filme e estava a falar com a Maria João, de onde é que vem a ideia da loba do mar, o que é que faz um lobo do mar ser um lobo do mar, não é o simples facto de teres um barco e ires, qual é que é o rito de passagem, pronto, duas argumentistas, dá conversa para 5 horas. Dessa conversa, veio a loba do mar, veio essa coisa das ligações contemporâneas, e nessas semanas nasce uma música chamada “Loba” e eu penso: bem que queria fazer uma curta, uma ficção, mas vem aí mais um disco. Mas eu não me via como escritora de canções, queria ser realizadora ou argumentista, é o que eu quero fazer. Não achava que estava à altura de “escritora de canções”, sou uma amante de música, desde miúda, e sempre quis ser música, mas não achava que fosse seguir carreira. Mas depois comecei a assumir esta coisa, mudei para o meu nome próprio, eu comecei a compor muito, depois tive o privilégio de tocar com músicos muito bons e aprender imenso com eles, com o Barata e o José Castro em estúdio, e depois aprender com o David Pires, com o David Santos, com o João Gil, é um privilégio para uma pessoa que não achava que ia ser música. De repente, são as tuas canções e eles estão ali a tocá-las, é realmente uma coisa muita bonita e eu comecei a sentir-me a pessoa mais sortuda do mundo. Depois ia compondo, eles a puxarem por mim, “mas toda a gente quer que eu faça música? Isto é extraordinário”. Então comecei a fazer este disco, começa a entrar a crise – em 2012, quando estreámos o filme, já sentimos que o filme era muito irónico, porque se falava duma espécie de crise no filme, em entrevistas de 2010, e nós em 2012 já estávamos a perceber que vinha aí uma coisa pesadíssima. E no meio disto, a enorme ironia de termos um primeiro-ministro com nome de animal, Coelho, e de eu estar a fazer um disco sobre lobos. E de achar genuinamente que as medidas que estavam a ser tomadas nos estavam a transformar em lobos esfomeados – porque os lobos só atacam quando têm fome, não são aquela coisa solitária, são uma comunidade muito coesa, vivem muito em conjunto e atacam porque têm fome. Uma das coisas que me inspirou também foi um livro que se chama “ABC da Natureza”, edições Reader’s Digest 1984, que tem uma caixa de texto sobre “por que uivam os lobos”. Eles uivam para comunicar e estar em contacto com a alcateia. E os cientistas achavam que os uivos que são assim mais em “stacatto”, mais curtos, são de aviso e os longos são de chamamento, e eu pensei que isto, a nível de composição, transcrição para composição, é fortíssimo. E portanto deixei logo isso como uma das grandes inspirações.
Mas, apesar de todo o contexto de onde nasceu o disco, soa tudo muito leve.
Sim, eu recuso-me a fazer uma canção que vá transportar a minha angústia para cima de outra pessoa. Há canções aí em que a letra não é nada leve e há uma certa ironia, tive muito cuidado em não fechar as canções, não é só o que lá está. Mas perante uma coisa que já era tão pesada para toda a gente, achei que a minha obrigação seria deixar pelo menos um rasto de caminho positivo nas canções e houve partes que foram cortadas mesmo porque não queria cantar aquilo, embora estivesse a sentir no momento em que escrevi. Mas a vida é para a frente, e basta veres o que está a acontecer na música portuguesa – não foi por não termos um Ministério da Cultura e termos passado pelo que passámos, que não reagimos duma forma espectacularmente positiva, e estão aí discos e filmes e peças de teatro e de bailado para ver. Acho mesmo, seja lá como for, que o nosso caminho é para a frente e tem que haver um esforço de sermos construtivos.
Tens algumas raízes africanas? Este disco transporta-me de imediato para um litoral africano, barco à vela, pesca artesanal.
Eu não tenho raízes nenhumas africanas, a minha grande influência africana é o Zeca Afonso, a sério. O José Castro acha que eu tenho uma costela do Norte de África, porque eu faço muita coisa em 6×8 e estou sempre e puxar por isso, há coisas que eles estão a ler em 4 tempos e eu estou no 6 por 8. E realmente eu sinto-me em casa quando ouço Tinariwen, há ali um certo lugar na música do Norte de África com o qual eu clico instintivamente. E é engraçado perguntares isso, porque eu quando era miúda perguntava isso à minha mãe. E a minha mãe dizia “não, porquê?”. E eu não sei, achava mesmo que parte da família tinha vindo não sei de onde, sentia mesmo essa ligação. Mas o José Castro também me perguntou, logo quando fomos gravar o Passeio Pelo Trilho, muito por causa das bases rítmicas, da maneira como eu toco a guitarra e o ritmo que lhe dou. E então eu tenho muita curiosidade de pagar um daqueles testes de ADN para provar que sim, que afinal está tudo explicado. Mas na minha música, não sei. Vem muito do Zeca, da música brasileira… Neste disco especificamente, há uma grande influência da Water Music, de Vanuatu – que são umas mulheres que se juntam, ficam com água pela cintura, cantam e com as mãos a bater na água fazem ritmos e é lindíssimo e incrível, os tons que se consegue sacar com a água, é muito tribal. E eu sempre me movi muito por coisas com ritmo super poderoso. Passava tardes inteiras a ouvir os solos do Max Roach, quando apareceu o projecto Adufe, na Expo 98, ia lá cada vez que eles iam tocar, aqueles adufes gigantes, aqueles graves, e era qualquer coisa de inexplicável. Tenho uma certa tendência para andar à procura da identificação de cada cultura, sou muito fascinada, seja pelos cantos do Norte da Europa, ou música da América Central, ou de África – queres território melhor?
Fala-me sobre o conceito da loba. É que o imaginário da loba é diferente do lobo.
Sim, eu mais tarde vim a descobrir que há muito imaginário, das lobas, mas eu não fui por aí, eu virei a palavra para o feminino e pronto. E não quis ir por aí. Quis manter essa ligação da solidão e do mar, portanto quando falo de ser loba estou a falar sobre essa necessidade de evasão que as pessoas têm, se o lobo do mar se vai encontrar a si próprio sozinho, e a canção é uma piada a isso, como é que duas solidões ou dois espaços pessoais se encontrariam. A loba para mim tem a ver com uma espécie de rito de passagem, mais do que com essa ideia que já existe dos círculos das lobas, que eu depois vim a perceber, mas eu pensei “ok, isto pode ser levado para este lado, mas não fui eu que levei”. Porque eu já tinha o universo todo definido e queria até deixar em aberto, e isso é claro nalgumas canções. Em várias delas está-se a falar de uma necessidade de ir, mais do que de um papel feminino ou masculino, também não quis estar a fazer um disco feminista por oposição. Quis deixar uma coisa equilibrada, a canção da “Loba” também tem o seu lobo, e a “Fome de Lobo” tem muito a ver com o estado abstracto, de nos tornarmos lobos porque temos fome e não sermos ferozes por vontade própria.
Este é o segundo volume. Já tens ideia sobre o 3º capítulo?
Já tenho ideia, mas não quero falar sobre isso, porque pode ser óbvio, mas não é assim tão óbvio. Tal como trabalhei no conceito de loba, estou a trabalhar noutro, que sobre que faceta eu quero escrever. Também ainda é vago para mim, há músicas que estão a surgir, mas é um discurso diferente e ainda estou a explorá-lo, já tenho uma ideia da palete. Mas entretanto, não sei se tenho dois discos, tenho a nítida sensação que tenho dois discos, estupidamente diferentes, é como aquela coisa do “vais para a direita ou vais para a esquerda?”, e ainda estou com uma certa dificuldade em… ainda está tudo muito quente, o “Mergulho em Loba” acaba de sair, ainda estou a descobrir estas canções, há toda uma nova faceta. Se isto fosse um filme seria o segundo acto, portanto o terceiro acto eu ainda preciso de perceber onde é que quero que acabe a história, se é mais cedo ou mais tarde, se quero que acabe, são muitas decisões. Sei que estão a surgir dois caminhos e estou a tentar perceber se eles coexistem ou não, e isso levanta uma data de questões para mim, ainda é muito vago.