O mais provável é que já tenhamos ouvido o baixo dele, mesmo sem o saber. Além de baixista residente dos Diabo na Cruz, Bernardo Barata também foi membro dos (saudosos) Feromona, e tocou com inúmeros projectos nacionais, dos Oioai ao Real Combo Lisbonense. Agora, em 2015, edita o seu primeiro álbum a solo. Turista já está disponível nas plataformas digitais, em Janeiro deve chegar o vinil, e o Altamont sentou-se à conversa com o músico, para perceber de onde lhe veio disco.
Depois de passar por inúmeras bandas e projectos, acabas de lançar o teu primeiro álbum a solo. Isto foi um bocado uma surpresa.
Este disco começou a ser feito há muito tempo. E demorou porque às tantas eu percebi que eu queria que isto fosse – e daí o nome Turista – uma cena onde eu me divertisse e não uma coisa com deadlines e prazos e regras muito fixas. O disco começou a ser feito em 2010, ainda que não tenha sido espalhado ao longo destes anos todos, ou seja, não trabalhei no disco todas as semanas – foram mais ou menos três períodos sérios de trabalho. O primeiro foram as baterias, convidei o João Pinheiro [Diabo na Cruz] e depois o David Pires [Pontos Negros] e fiz a base, uns tempos depois trabalhei mais um bocado, e agora nos últimos 4 ou 5 meses é que acabei realmente o disco. Intercalado com um ano muito forte de Diabo na Cruz, muita estrada, mas consegui ir fazendo as coisas e estar com a disponibilidade que precisava para ir fazendo o disco com o espírito que eu queria, que era um espírito de “turismo musical”, de vale tudo.
Ora tu és, primordialmente, baixista, de vez em quando cantas uns coros mas não és um frontman. Como é que foi agora assumir o protagonismo?
Essa transição eu tenho de a fazer todos os dias porque não é mesmo uma coisa muito natural. Eu cheguei a dar alguns concertos em nome próprio, mas nunca me assumi propriamente como frontman e sempre tive algumas dúvidas se seria capaz de ser um frontman em palco, na verdadeira acepção da palavra, não ser só um gajo que faz música no quarto. Eu não sei muito bem se vou tocar este disco a sério, ou faço só uns concertos de lançamento – mas também já pensei que se vou pôr uma banda de pé e vou fazê-los ensaiar, para dar só dois concertos mais vale dar mais uns quantos e levar a coisa a mais gente. Aí sim, essa transição para frontman passa a ser mais relevante, tenho mesmo de chegar ali e agarrar no microfone e levar tudo à frente. Não sei, deixa ver o que é que acontece.
De onde vem a ideia de compores as tuas próprias músicas? Acredito que nas tuas bandas não componhas muito.
Muito pouco é da minha autoria. Em Diabo na Cruz, as composições são sempre do Jorge [Cruz], sendo que depois damos todos bastante àquilo que ele traz. Em Feromona era essencialmente o Diego [Armés], mas há uma ou outra música minha, se bem que com as letras sempre dele. De qualquer maneira, já antes disso, desde puto que eu faço coisas sozinho, mas sempre… Eu conheço muita coisa, trabalhei em várias editoras, já papei de tudo e mais alguma coisa, e gosto de muita coisa diferente. E essa cultura musical faz com que eu seja bastante exigente em relação a mim próprio e olhe para as coisas que faço com um ouvido muito crítico e pense “não, isto não é nada, isto já foi feito 50 vezes antes, melhor, por outras pessoas mais interessantes que eu”. Até chegar a uma altura, mais recentemente, em que comecei a perceber que há aqui coisas que eu faço que têm uma piada própria, que têm uma personalidade ou identidade que eu já acho que posso mostrar isto às pessoas e ter orgulho naquilo que estou a mostrar. Daí que, já componho há muito tempo, mas para valer é agora.
Quais foram as principais diferenças que encontraste entre o trabalho com banda e o trabalho a solo?
A principal é… e é uma coisa que quero mudar. Eu quero ir já fazer mais música minha, aliás já tenho material e quero começar já a trabalhar para que haja um outro disco daqui a não muito tempo. Eu em banda, mesmo que aparecesse com uma ideia minha, aquilo era trabalhado em conjunto até se transformar numa canção. Sozinho, tendencialmente, eu já estou a gravar coisas e ainda nem tenho a canção propriamente acabada. O que leva a que o processo seja mais longo – e é isso que eu quero mudar no próximo disco – que é ter as canções feitas, nem que seja à viola, simples, mas do princípio ao fim, bem definidas, e depois ir gravá-las. Porque se não, o que acontece é que um gajo começa a experimentar, a disparar em todas as direcções e depois já tem um bocado da canção com uma granda pinta mas depois demora mais a desbloquear para continuar e acabar a canção. Estou um bocado farto disso, mas isso é sintomático de quem trabalhou muito tempo enfiado num quarto, com um gravador de 4 pistas, a fazer coisas sozinho, que foi um bocado como eu aprendi a compôr música. Este disco tem muito a ver com isso, e com a ideia de tentar simular uma banda gigante a tocar num espaço enorme, mas enfiado no quarto.
Então tudo o que se ouve no disco foste tu que tocaste?
Essencialmente, convidei os bateristas para as bases, porque queria muito que isto fosse à séria e se a base de bateria for boa, é logo muito mais fácil construir por cima. O resto é fácil em casa, gravei baixos, guitarras eléctricas e acústicas, alguns sintetizadores e pianos, e algumas percussões. Depois também convidei o Manuel Pinheiro [Diabo na Cruz], que gravou percussões em boa parte do disco, e ainda convidei o João Gil [Vitorino Voador, Diabo na Cruz, You Can’t Win, Charlie Brown] para alguns pianos que eu sabia o que é que tinham de ser, mas não conseguia tocá-los.
E a tua forma de compôr canções, é principalmente ao baixo?
É à guitarra, acima de tudo. Nunca componho no baixo. Mas tem acontecido outra coisa, que apanhei um bocado com o Jorge Cruz, que é – em vez de compôr com um instrumento, é pegar no telefone e gravar as ideias melódicas que tenho, às vezes é logo com uma letra, e estou a cantar qualquer coisa que tenho na cabeça mas deixo-me ir por instinto e não agarrar-me a um instrumento, onde tendencialmente vou tentar seguir fórmulas. A verdade é que um gajo se prende muito mais se estiver a compôr com um instrumento, pelo menos eu sinto isso. E assim só pego no instrumento mais à frente, quando já tenho uma ideia do que é que é aquilo que estou a querer fazer. E é francamente bom trabalhar assim.
E a parte da escrita das letras?
Aí a coisa é muito diferente. Neste disco só há uma letra minha, o resto, mais de metade, são letras da Joana Barra Vaz – que vai ter agora um disco muita giro, que tem uma carrada de músicos e participações. A Joana, já há uns bons anos, começou a escrever umas coisas e ocasionalmente mandava-me uma letra, eu recebia no e-mail a letra e no dia seguinte respondia-lhe a dizer que já tinha feito uma musica para aquilo. E fizémos assim, sem grandes regras e sem grandes ambições, mas foram saíndo algumas coisas giras. Temos sensibilidades semelhantes, estas letras podiam ter sido escritas por mim de sentimento, não tenho é o jeito que ela tem para as palavras. Mas depois tem uma adaptação de uma coisa do Boris Vian, tem duas versões – uma de Oioai outra dos Pontos Negros, onde depois tenho o David Pires a tocar bateria. Tenho também um poema do João de Mancelos, que encontrei numa “Antologia de Poesia Erótica”, chamado “Lobos e Meninas”; e há uma música em que a minha filha lê um poema da Sophia de Mello Breyner, que acabou por inspirar a ideia da música. E pronto, é muito fácil e rápido compôr uma música se tiver uma letra.
E como é que foi isto de cantar?
Eu sempre cantei muito, nas bandas, a fazer coros. Mas nunca tinha tido bem esta coisa de cantar à frente. Foi um processo engraçado, embora eu já me tivesse gravado muito em casa, não tinha a experiência de tentar mesmo agarrar as canções, como frontman. E o que tive de fazer, essencialmente, foi cantá-las muitas vezes, até não pensar no que estava a fazer, até simplesmente intrepretar algo em que já não pensava, de todo, no assunto. Já não pensava nas palavras ou na letra, e aí acho que consegui cantá-las como frontman, e é um processo engraçado.
E cantas bem, tens um registo interessante e às vezes a métrica lembra Jorge Palma e Sérgio Godinho.
São duas grandes inspirações. O Palma, especialmente do tempo do Só, que me toca mais. E o Godinho, sou grande fã. Até do ponto de vista musical, já não só da forma como eu pego nas palavras, também há influência, em grande aspecto, na harmonia de algumas das músicas. O Sérgio Godinho tem uma coisa especial, mesmo as músicas aparentemente simples, não são nada simples. Assim de repente lembro-me do “Com um Brilhozinho nos Olhos”, que tem uma harmonia completamente fora, e aquilo depois de uma pessoa estar a ouvir a canção muitas vezes já nem pensa nisso, mas aquilo não é de todo simples. Há sempre uma tentativa do Sérgio Godinho de fugir à regra e à norma, de como é que a harmonia deve ir desenvolvendo, em relação à melodia – e eu apanhei muito disso.. acho eu, gosto pelo menos de pensar que assim é. E também me influenciou muito o Zé Mário Branco, a maneira de cantar as palavras.
Sobre o título do disco, há bocado falaste de “turismo musical”.
Não tem muito que se lhe diga, é mesmo isso. A ideia foi ir fazendo o disco quando tenho a disponibilidade – mental, emocional, temporal – para o fazer, em função de tudo o resto que faço. Eu meti na cabeça que não ia fazer este disco para ganhar dinheiro e que ia fazê-lo essencialmente para me divertir, daí o turismo, e o título Turista. Um bocado em oposição a estar a fazer outras coisas – que não quer dizer que as faça só para ganhar dinheiro – mas em que há uma responsabilidade, em termos de agenda, de prazos e regras de fazer as coisas, que têm de ser cumpridas. Portanto eu queria fazer uma coisa que fosse o oposto ao resto que estava a fazer. E este disco é muito diferente, por exemplo, de Diabo na Cruz. Talvez possa haver aqui e ali alguma influência lógica, mas são coisas completamente distintas, esteticamente não têm nada a ver, são bem longínquas.
Também estava a pensar se este disco seria um caso isolado mas, já disseste, vais continuar.
Já tenho material, se bem que agora queria muito fazer a coisa doutra forma e ver se consigo ter um repertório mais ou menos pensado e bastante bem definido na minha cabeça, e não ir gravando nada dessas ideias – eventualmente ter uma maquete só à viola ou ao piano, com a base da canção – para depois pegar num grupo de músicos bem escolhido, rodar esse repertório e fazer os arranjos com uma banda criada para o efeito e ir gravar com uma banda, que não foi nada do que se passou agora. Tenho muita vontade disso. Este disco seria muito diferente se tivesse muitas participações de outras pessoas, porque as que teve – a bateria ou a percussão – não interferem na harmonia e a melodia das canções, portanto o disco é muito meu. E eu agora preciso de fazer outra coisa diferente disso. Apetece-me ter a base das canções e depois poder ir tocar com pessoas de quem eu gosto, que deêm o seu contributo, estou a sentir falta disso.
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