Se a arte é fingimento, este disco não é arte. É outra coisa qualquer.
O hip-hop em Portugal é um bicho estranho. Sem nunca ter vendido muito, sem nunca ter chegado a fenómeno de massas (excepção feita, talvez, aos panteónicos Da Weasel), é um dos segmentos de maior vitalidade em termos de longevidade e de frescura criativa. Mas, no momento que o país atravessa, é até lógico que exista um caldo cultural que garanta as condições para a música de intervenção, em sentido lato, robustecer-se.
Capicua não existe de agora, não é filha da crise nem da troika. Mas nem por isso deixam de ser mais adequadas, nestes tempos de chumbo, as suas palavras de afirmação e de luta.
Ao segundo LP de uma carreira com vários anos e alguns EP, a rapper portuense traz-nos este Sereia Louca que, na minha opinião, figura já, sem dúvida, entre os melhores discos nacionais dos últimos anos. Não apenas no campeonato do hip-hop, mas da música portuguesa.
Eu tinha-a topado no disco (2012) editado pela sempre louvável Optimus Discos, com a minha atenção a ser presa pelo ritmo das palavras e por aquele sotaque tripeiro, misto de autenticidade e irreverência. Esse era um disco de afirmação, de grito, de “Eu estou aqui”. Sereia Louca é, claramente, um gigante passo em frente. De alguém que não precisa de dizer “Eu estou aqui”; está aqui, sabe onde está, e agora quer mostrar-nos o que sabe fazer.
E o que Capicua sabe fazer é escrever, rimar, observar, comover, olhar para fora olhando para dentro, sempre numa honesta e exposta dicotomia entre a postura de combate e a fragilidade da pessoa que luta. As suas palavras gesticulam por cima de uma capa que, essa sim, conheceu um sério upgrade, com os beats de vários colaboradores que elevam o jogo, entre eles DJ Ride e Conductor. Ainda não estamos no olimpo de criações de Sam the Kid, mas nunca estivemos tão perto, digo eu.
É um disco sobretudo maduro, de alguém que afirma não querer crescer. É um disco de hip-hop que, graças a Deus, não tem a merda de um yo, uma mão nos genitais, uma fachada a armar ao mau. É um disco que nos relembra que o hip-hop tem muitos méritos, pode ser muita coisa diferente e, sobretudo, não tem de ser a paródia que, sobretudo nos EUA, atacou o género.
O grande trunfo de Capicua é que está a fazer o que mais ninguém – que eu conheça – faz. Tem um estilo próprio, uma voz e uma visão inconfundível. É uma mulher na escrita e na voz e, lendo as suas palavras, nunca poderia ser de outra forma. Não faria qualquer sentido ser um homem de microfone na mão. É música feminista, sim. No melhor dos sentidos, sim. Ouçam “Mão Pesada”, ouçam “A Mulher do Cacilheiro”. Que parte da observação e da experiência para falar de mulheres, das suas dores, das suas vitórias, das suas inseguranças, das armadilhas que, muitas vezes, elas próprias colocam no seu caminho. Música de intervenção, sim, sem dúvida, porque a intervenção começa na nossa casa, na nossa rua, na nossa família, na nossa cabeça. E nesse microcosmos interior, hoje em dia e em Portugal, não há ninguém a trabalhar melhor que Capicua.
É suposto a música mexer connosco. E é isso que este disco me faz. Ouço um tema como “Vayorken”, uma viagem à infância, aos sonhos e brincadeiras, e eu volto a estar lá. Uma criança de classe média-baixa, pirosa, sonhadora, humilde, honrada, insegura e falsamente forte; estou a falar de Capicua, sim, mas também da criança que fui e que me fez o que sou. E ouvir estas histórias, contadas com a genuinidade de quem esteve lá, de quem foi e é aquilo, é comida de sonho para o meu espírito cansado de bullshit.
Comecei por dizer que este disco não é arte, se arte é fingimento. Porque aqui nada é fingimento. É coração, daqueles grandes, do Norte. E ainda assim Arte, com um A muito, muito grande.
Um dos discos mais importantes do ano, venha o que vier aí para a frente.
PS: já não deverão ir a tempo, mas vale a pena tentar nas FNAC comprar o disco (que ainda por cima tem preço de crise) e ver se ainda têm o livro, limitado a 500 exemplares, que o acompanha. Um objecto carinhoso e especial, para um disco muito especial.