Acaba de chegar a Portugal o novo disco de Gui Amabis. Compositor, cantor, poeta ocasional, biólogo amador, Amabis entrou no nosso país pela mão da Rita Redshoes, que o convidou para produzir o seu novo disco. Gostou e optou por ficar, para trabalhar na sua própria música e aproveitar para conhecer as origens. Demos com ele no Jardim da Estrela, em Lisboa, e o sino da Basílica marcou o compasso da conversa.
Altamont: Comecemos pelas tuas origens. Tens raízes portuguesas…
Gui Amabis: Sim, a minha mãe é filha de portugueses, os meus avós foram para São Paulo, não foram juntos mas conheceram-se lá. Curiosamente, eles saíram de duas aldeias em Trás-os-Montes, uma a 20 minutos da outra, mas foram-se conhecer no Brasil. Foram para lá com 20 ou 30 anos, foram criados aqui em Portugal. Eles eram bem portugueses e a geração da minha mãe foi a primeira nascida no Brasil, então eu estou acostumado a crescer em ambiente e festas de família portuguesa.
E já foste a essas aldeias em Trás-os-Montes?
Não, vou agora no fim do mês, antes de voltar para o Brasil. Vou alugar um carro e subir pelo litoral e depois entrar. Disseram-me para ir pela Serra da Estrela.
Falemos agora do teu percurso musical. Começaste por fazer bandas sonoras…
Justamente. Eu estudei música numa escola livre em São Paulo – não era uma escola credenciada pelo Ministério. Estudei com um músico, um mestre, durante 4 anos, estudava canto e violão [viola acústica], um pouco de harmonia, teoria. Depois desses 4 anos, precisei de mais dinheiro, eu tinha um trabalho – dava aulas de natação – e estudava, mas comecei a querer comprar instrumentos. Depois conheci um compositor, Antônio Pinto, que tinha acabado de fazer a banda sonora da “Cidade de Deus” e precisava de um assistente. Como eu não sabia nada de computadores, só tocar um pouco de violão e cantar, ele não me podia pagar, mas disse que eu podia ir ao estúdio sempre que quisesse, para ir aprendendo. Então lá fui durante 6 meses, sem ganhar nada, ficava a ver, fui aprendendo e um dia ele contratou-me – tinha um filme e achou que eu já podia ajudar. E aí eu entrei nessa do cinema. A certa altura passei lá uma noite e fiz uma música. Ele chegou de manhã e “oh cara, você ainda tá aqui?”, “É, fiz essa música” e mostrei, ele gostou, tanto que usou essa música no filme em que estávamos a trabalhar. Mais tarde conheci um produtor, Beto Villares (Patu Fu, Zélia Duncan), que estava a produzir o disco da Céu, uma cantora de São Paulo. Eu comecei a interessar-me muito por discos. Depois, ele chamou-me para produzir um disco com ele, de um artista chamado Rodrigo Campos. Com o Beto [Villares] produzi mais dois discos e aí entrei mesmo na produção. Só mais tarde comecei a sentir vontade de escrever.
Aí entramos na terceira fase do percurso…
Eu sempre escrevi umas coisas, mas nunca tinha feito uma canção. Mas comecei a sentir vontade, ficava em casa com o violão, a cantar, e aí compus umas músicas. Mostrei ao Antônio [Pinto] e ele gostou mesmo. Depois mostrei ao meu irmão, à Céu, a uns amigos – e esse grupo de amigos ficou animado e decidimos fazer um projecto. E estas foram as minhas primeiras músicas gravadas. E fiquei encantado com isso de poder ter essa liberdade, de fazer a minha música por mim e não estar a ser visto por alguém, um contratante, enfim. E aí decidi fazer o meu disco, comecei devagarinho a compor a ideia de o que é que seria o disco. E eu tinha uma proximidade muito grande com essa minha avó portuguesa, ela ajudou-me a pagar a escola de música, e foi ela que me incentivou a largar a minha profissão e vida académica, quando viu o que eu gostava, encorajou-me a ir atrás disso. E eu fiquei muito feliz por conseguir realizar esse primeiro disco [Memórias Luso/Africanas] e logo depois já estava com mais músicas e quis fazer outro. Mas eu adoro trabalhar com produção e adoro bandas sonoras, não abandonei essas coisas da minha vida, eu amo fazer isso e é o meu sustento. Porque a minha música autoral é uma realização pessoal, não me traz realização financeira. Traz realização pessoal, primeiro por fazer uma coisa que eu gosto, e depois por poder..eu sinto que algumas pessoas são ajudadas pela minha música, sinto isso às vezes, e gosto muito disso.
E assim chegamos a este teu disco. Que trabalhos carnívoros são estes?
Bom, o nome do disco é o nome de uma canção. Eu sou filho de biólogos e cresci na rua com músicos amigos e outras ideias, e ouvindo sobre…vendo amores, sofrendo, enfim. E eu comecei a pensar no Homem, a tentar relacionar essas coisas do sentimento com as coisas que eu ouvia em casa, científicas e biológicas, e fiquei pensando muito em como a vida se formou aqui na terra e como evoluiu, por conta das condições climáticas. e essa música fala disso, de como é a experiência de ser um homem aqui, neste momento, neste lugar. E por isso veio o título, Trabalhos Carnívoros, porque de alguma forma, a vida organizou-se na carne, seja ela aquela a que tradicionalmente chamamos de carne, mas também a carne vegetal, enfim…Para mim é isso os trabalhos carnívoros, são as coisas que nós precisamos de fazer para poder estar aqui – e as coisas que estavam aqui e vieram a formar-nos.
Portanto acaba por ser quase uma reflexão sobre a evolução da nossa espécie. E tudo isso cabe neste disco?
Cabe um pouquinho, não dá para ter tudo. Imagina quantas páginas tem o livro do Darwin. Então são pitadas de coisas que eu falo, e se aquilo despertar alguma coisa em alguém que queira informar-se mais sobre o assunto, que vá. Agora, eu não pretendo fazer nenhuma teoria, é só a exposição de algumas coisas que eu vejo. Não acho que um disco seja lugar para fazer um tratado científico…é mais sobre como isso me influenciou como Ser amante, Ser sexual. Está tudo ligado. Mas muita gente não se dá conta disso, então eu quis mostrar: “olha, existe isto…” E eu senti que essa música tinha o título – Trabalhos Carnívoros – e que ele aceitava todas as outras músicas e todas as outras letras, nem todas falam disso, há umas sobre decepção amorosa, outras sobre a parte boa do amor – mas achei que o título conseguia englobar tudo.
A sonoridade vai buscar inspiração no tropicalismo, e o conceito – há ali melancolia/solidão?
Eu não sei se é assim, essa questão da solidão… Eu sempre achei que nós estávamos sozinhos aqui na Terra. Ainda acho isso, acho que apesar de termos a nossa família e os nossos amigos, somos seres solitários aqui. Eu gosto muito de ficar sozinho, tenho essa necessidade, desde menino, e é difícil algumas pessoas entenderem essa minha necessidade. Sim, considero-me um pouco melancólico, mas no meu trabalho artístico, no meu dia-a-dia não me sinto uma pessoa melancólica. Este é um disco que vem num processo meu… foi num momento difícil por algumas razões. Eu tinha-me separado da minha mulher, tinha ido morar para longe da minha filha, fiquei sozinho de novo e não foi um momento fácil da minha vida, acho que isso se reflecte um pouco na sonoridade e nas letras. Não acho que seja um disco de todo triste. Mas tem essa melancolia e eu sinto que os portugueses podem-se relacionar com isso, sinto que é um país que tem isso muito presente – e eu talvez tenha isso em mim por ser neto de portugueses. E eu acho que a música brasileira tem essa melancolia também, se pegares no cancioneiro brasileiro, as modinhas, o samba-canção – a música e o sentimento portugueses estão muito presentes, nas harmonias e caminhos melódicos. O Brasil é muito português, a gente não percebe isso lá – eu percebo porque tenho Portugal muito próximo de mim, agora até sou cidadão português também.
Quando tu fazes as tuas canções, de autor, é-te difícil afastar do universo das bandas sonoras?
Eu sinto que é muito presente. Na banda sonora, como te estás a servir da imagem, às vezes não podes ter uma melodia em primeiro plano e às vezes é mais importante a textura do que realmente as notas que se colocam, às vezes até o silêncio, o espaço entre as coisas. Sinto que isso me ajudou a expandir a minha experiência sonora, mas não sinto que seja essencial, na minha música autoral eu foco mais as canções mesmo, as letras e as melodias. O que me ajuda é que – com as bandas sonoras é preciso trabalhar muito, editar muito, muitas horas de música – então o processo fica mais fácil, a gravação, perceber o que é que está a atrapalhar o quê. E sinto que fica com uma textura sonora mais rica e mais abrangente do que simplesmente baixo, guitarra, bateria. Cria esse universo mais colorido.
E neste disco és tu que tocas os instrumentos todos?
Não. No primeiro disco [Memórias Luso/Africanas] tive mais gente a cantar, mas o instrumental fiz mais eu sozinho, tive alguns convidados mas gravei um monte de coisas. No segundo [Trabalhos Carnívoros] eu queria ter mais pessoas, chamei o Regis Damasceno para produzir comigo, queria ter outras opiniões, não queria que fosse só a minha visão. Eu gravei mais teclados e programei, editei, peguei nas coisas gravadas e inverti um monte de coisas, montei outra coisa a partir do que foi feito, enfim, um trabalho de edição. Acabei por tocar menos, mas fiz os arranjos.
Mas por outro lado, aqui já assumiste mais o teu cantar?
Isso. Até por isso eu não quis fazer tudo, não dá para cantar, tocar tudo… e acho que fica pobre. Mesmo sendo um instrumentista virtuoso – não é o meu caso, eu sou um instrumentista preguiçoso, não é a performance que me interessa, a minha coisa com a música é outra viagem, mais a arte e a composição, faço com calma. E senti que ia ficar pobre, tem de enriquecer. Sempre que eu trago alguém para trabalhar comigo eu chamo essa pessoa porque eu ouço a música dela e penso “este músico, aqui, vai fazer uma coisa legal”. Se no final as ideias não chegarem eu tenho a minha ideia na cabeça e dou algumas instruções, mas espero nunca chegar aí. Mas os músicos com quem trabalho já me conhecem. Não é preguiça, pode pensar-se que não pensei no arranjo, mas pensei, só que cada pessoa vem com uma visão fresca e quero aproveitar aquilo, não quero colocar a pessoa numa jaulinha e dizer “tem de fazer isto assim”. E isso é das coisas que mais me apaixona em música, o trabalho em grupo. É estar com os amigos, falar bobagem, conversar e de repente sai uma coisa legal ali e “vamos aproveitar isso para esta parte da música”. Então é esse o meu principal trabalho como produtor: ouvido atento na hora da gravação.
E planos futuros – além de bandas sonoras e produção – tens planos para mais discos em nome próprio?
Eu estou aqui em Lisboa a fazer isso, estou a gravar o meu próximo disco aqui. Vim em Novembro, a convite da Rita [Redshoes] para produzir o disco dela, e fiquei cá esse mês todo. Acabei por conhecer alguns estúdios, alguns músicos. Mais tarde voltei, já este ano. E para o meu disco, já tinha gravado umas algumas bases no Brasil – baixo, bateria, guitarra – e achei que podia ser interessante gravar aqui algumas coisas, com músicos de cá. Então trouxe a base instrumental e gravei cá todos os arranjos de cordas, com um quarteto português. Isso já está pronto, editado, agora estou a finalizar os arranjos para gravar vozes, também aqui em Portugal. Sou eu que canto tudo. Espero lançar no ano que vem, sai em Janeiro no Brasil, aqui ainda não sei.
E como foi produzir o disco da Rita Redshoes?
Para mim foi uma surpresa incrível. Eu não conhecia o trabalho da Rita – a música portuguesa não chega ao Brasil, só um pouco de fado. E chegou-me o convite e eu “nossa, Portugal, sempre quis conhecer”, nunca tinha cá vindo. E ela disse para eu não escutar os discos dela, porque queria que eu fizesse um disco a partir das canções, não queria que eu soubesse o que ela tinha feito nos outros discos, não queria que eu soubesse para onde ela queria ir, não queria que eu soubesse quem ela é. Só depois é que fui descobrir que ela é uma artista conhecida em Portugal, fui ouvir uma música porque tinha de ouvir a voz, para ver se tinha a ver. Porque eu tenho a sorte de, na minha carreira, ter tido trabalhos que têm a ver comigo, sempre que produzo um disco tenho essa sorte, de aparecerem coisas que, não estando 100% no meu universo, têm uma parte que passa por ele. Então fiquei muito surpreso, achei a voz dela muito bonita, ela canta muito bem, e decidi arriscar e vir até cá. E ela arriscou ainda mais, chamou um produtor brasileiro. E comecei o disco lá, trabalhei durante 2 meses, trouxe um monte de coisas gravadas e depois finalizámos aqui as gravações. E eu encantei-me com Portugal, achei muito gostoso, a vida mais calma, Lisboa é mais calma, o ar é mais puro. São Paulo…nem vamos entrar por aí.
Para terminar, o Brasil está a receber a Copa do Mundo. Gostas e costumas seguir o futebol?
Gosto. Não tenho seguido todos os jogos, mas alguns. Eu adoro futebol, joguei quando era menino, mas o negócio do futebol está a mexer com a minha paixão por desporto. Cada vez fico mais… Já não torço por nenhuma equipa profissional há muito tempo, mas tenho simpatia pela Portuguesa Paulista. Mas o negócio futebol… acaba por ser um reflexo do ser humano, um reflexo do que é a política, os negócios. Mas gosto muito do jogo em si, acho que é o desporto mais bonito.
(Gui Amabis vai apresentar este disco ao vivo no dia 8 de Julho, na Casa Independente, em Lisboa, e vai ter a companhia de Rita Redshoes e Tiago Maia)
Bela entrevista! Percebo agora muito melhor o “Trabalhos Carnívoros”.