Há poucas semanas, apresentámos o brasileiro Bonifrate ao público português, na tentativa de fazer luz sobre um dos projectos mais interessantes da música brasileira contemporânea. Entre a folk e o psicadelismo, influência assumida pelos mais jovens Boogarins, Pedro Bonifrate é o homem por trás da música. Nesta entrevista, ficaremos a conhecer melhor este habitante de Paraty, e buscamos encontrar os laços atlânticos que o unem a Portugal. Para além de ter colaborado no tema “Verso Inverso”, no Projecto Fuga do português Pedro Pereira, está em curso um trabalho com base num texto de Garcia de Resende, poeta português dos séculos XV e XVI.
Senhoras e senhores…Pedro Bonifrate.
Altamont: O teu som tem uma matriz psicadélica mas também de folk pastoral. O facto de viveres perto do mar e da natureza leva-te a isso, em vez de usar mais os sons mais eléctricos?
Bonifrate: Algum tipo de “folk pastoral” esteve sempre presente na minha formação musical, e acho que existe uma conexão entre isso e o fato de eu ter crescido numa cidade do interior onde a serra encontra o mar e onde ainda podemos viver o pouquinho que nos resta da Mata Atlântica. Eu e meus amigos, incluindo o Diogo Valentino, meu parceiro nos Supercordas, vivemos intensamente essa proximidade com a natureza. O primeiro disco dos Supercordas, Seres Verdes ao Redor (2006), e o segundo como Bonifrate, Os anões da Villa do Magma (2005), trazem muito dessa tendência, e inclusive buscam celebrá-la. Mas não acredito ser uma relação tão linear – os sons elétricos sempre estiveram lá, mesmo servindo como fundo aos violões e harmonias vocais. Eu morei no Rio de Janeiro dos 17 aos 30 anos, e o último disco solo que gravei na cidade, Um futuro inteiro, tem muito mais de folk do que o Museu de Arte Moderna, que é um disco que gravei maioritariamente em Paraty, depois que voltei a morar aqui em 2012. Este último álbum me parece o mais elétrico que eu fiz como Bonifrate.
As tuas influências parecem vir de algum Pink Floyd dos primeiros discos, mas também dos incontornáveis Mutantes. Concordas com isso? Que outras coisas foste ouvindo e te servem de inspiração?
Concordo sim. Acho que os primeiros de Floyd de alguma forma me impulsionaram a gravar discos quando eu era garoto. Minhas primeiras fitas (praticamente inaudíveis de tão lo-fi) procuravam muito aquela cara psicadélica e contadora de histórias malucas do Piper at the Gates of Dawn, e as canções eram em inglês. Os Mutantes tiveram um papel importante para mim quando comecei a escrever em português. Lembro de ouvir “Ave Lúcifer” e ficar perplexo com aquele som e com aqueles versos. Senti que dava pra fazer o som psicadélico que eu já curtia há tempos em português, soando mesmo muito esquisito, e desde então eu tenho feito. Os Super Furry Animals, que são uma das minhas bandas favoritas desde que eu os descobri lá para o final dos anos 90, também mudaram muito minha abordagem da escrita musical, tanto sonora quanto liricamente. Muitos artistas inventivos dos anos 90 entraram nesse caldeirão de ligações criativas, às vezes mais até do que os sessentistas – Mercury Rev, Spiritualized e Spacemen 3, Flaming Lips, Gorky’s Zygotic Mynci, Beck, Cornershop, Jupiter Apple, Stereolab, Wilco, as bandas da Elephant 6 – acho que tudo isso aparece de alguma forma no som que eu faço, seja em que projeto for.
O mundo está a viver um revivalismo do imaginário psicadélico, com bandas como Temples, Unknown Mortal Orchestra, Tame Impala e até os nossos amigos Boogarins, de Goiânia. Porque achas que isso está a acontecer?
Não tenho ideia de porque isso está acontecendo. Acho que nunca deixou de acontecer. As bandas sempre estiveram lá, e sempre apareceram artistas novos com essa cara, mas talvez não tivessem uma conjuntura favorável pra alcançar uma grande circulação há anos atrás. No caso do Brasil, realmente me parece que os Boogarins são uma grande novidade, pela circulação que eles estão tendo em relação ao tipo de som que eles fazem. Claro que você tem coisas incríveis daqui que acabam chegando em outros lugares do mundo, do Sepultura aos Autoramas, mas uma banda com essa sonoridade, que trabalha com modulações, mantras, que canta suas próprias viagens com tanta leveza em cima de sons pesados e ocultos (talvez bastasse dizer “tão psicadélica!” rsrs)… acho que há muito tempo a lusofonia não se espalhava tanto pelo mundo dessa forma específica. Isso é legal, porque também sobe uma antena lá no coração da América do Sul, que espalha ondas senóides e distorções pelo planeta.
Hoje em dia, consegues viver fazendo só música, ou precisas de ter um trabalho mais convencional?
Estou na longa tradição brasileira de artistas e escritores que viraram funcionários públicos. Eu sou historiador e atualmente trabalho num museu.
Tal como os membros dos Boogarins, tu também tocas em vários projectos diferentes. É por necessidade ou opção? Que coisas diferentes isso traz para a tua vida e para a tua música?
Tudo na música é por opção para mim. E tudo se relaciona diretamente à amizade, e à forma como algumas relações vão se tornando artísticas. Nos anos 90, quando gravava num porta-estúdio de fita com o Diogo, só nós dois tínhamos três projetos – o meu solo, o dele solo, e o Vitrola Photossintética, que éramos nós. Eu sozinho cheguei a gravar como Psylocibian Devils antes de passar a Bonifrate. Depois passei a curtir muito tocar guitarra nas bandas de amigos, desde que o Augusto Malbouisson me chamou para os Acessórios Essenciais, e depois com o Digital Ameríndio (do também companheiro de Supercordas, Sandro Rodrigues) e agora com o Simplício Neto & Os Nefelibatas, que eu também tive o prazer de produzir. É tudo uma questão de amizades e de similitudes. Faz parte da costura do próprio tecido da vida, de como as coisas vão se delineando.
O mundo continua a ver a música brasileira como MPB, Bossa Nova ou algumas coisas mais comerciais de hoje em dia. Por que razão achas que o rock brasileiro mais alternativo não tem sido mais reconhecido, no exterior e no próprio Brasil?
Nós tínhamos uma indústria musical bastante desfasada em relação ao rock alternativo no tempo da velha indústria musical. Talvez porque fosse, de fato, um som alternativo em seus tentáculos. Caras como o Rodrigo Lariú lançavam zines e fitas de bandas muito boas há mais de 20 anos atrás, e era tudo um grande underground, mas o jeito de circular alguma coisa pelo mundo devia estar mais conectado às grandes editoras, e elas não estavam interessadas naquelas vozes mergulhadas em guitarreiras e coisas assim, não tinha um Flaming Lips que uma Warner resolve se dar ao luxo de lançar por essas bandas de cá. A nova grande indústria musical continua não se interessando muito. Mas hoje existem outras teias de contatos e relações, empreitadas pequenas conseguem ter mais circulação, às vezes sistemas pequenos conseguem se virar melhor do que há 15 anos atrás, e no Brasil isso passou a acontecer também neste século. É mais fácil, inclusive para as bandas, se organizar pra correr o mundo e fazer a música ser ouvida por aí. Acho que temos hoje as nossas bandas alternativas pelo mundo, podem não ser tão grandes e certamente não são tão imbuídas de algum tipo de nacionalismo ou características específicas que rapidamente as identificariam como brasileiras, e acho ótimo que não sejam.
Depois do LP de 2013 e do EP, o que vem a caminho em termos de novas edições?
Os Supercordas gravaram um novo álbum neste último verão, nosso terceiro, no Estúdio Canoa em São Paulo. Está rolando uma pós-produção e deve ficar pronto lá pelo meio do ano. Deve sair também pela mesma Balaclava Records que lançou o LP Museu de Arte Moderna. Como Bonifrate, estou a meio caminho de terminar de gravar em casa um projeto que já há muitos anos tenho pensado. É uma releitura musical de fragmentos de um poema português do século XVI, do trovador Garcia de Resende. Eu esbarrei com o texto durante minha pesquisa de mestrado e ele brilhou como música aos meus olhos e ouvidos. Vai se chamar Mundo Encoberto, e vai ser apresentado em partes de uma única faixa, como alguns discos de prog dos anos 70. Com Simplício Neto & Os Nefelibatas, acabamos de lançar dois EP’s, um deles produzido por mim, e estamos fazendo alguns concertos por aí.
Tens tocado no exterior? O que seria preciso para te vermos a tocar em Lisboa?
Nunca toquei. Já rodei muitas cidades do Brasil, mas nunca lá fora. Deixa eu ver, em primeiro lugar, esperar um pouco, porque estou prestes a ser pai de uma menininha e me disseram que isso dá trabalho. (Risos) Mas basicamente (além de eu programar umas férias, claro) uma conjuntura que consiga pagar as passagens dos músicos e a estadia já tornaria isso bem possível. Acho que em pouco tempo podemos conseguir dar esse pulo.
Que tipo de música tens ouvido ultimamente?
Nos últimos anos enfiei um pé no reggae e no dub, e ando ouvindo muito rock alemão dos anos 70, principalmente Can e Faust e essas coisas. Escuto muito os sons que sempre escutei, e algumas curtições dessas vêm em ondas. Agora comprei dois discos de Velvet Underground, por exemplo, e estou ouvindo o White Light/White Heat até furar. Também descobri mais a fundo a discografia do Kevin Ayers, e ele era bom demais. Dos sons lusófonos, acho que o que mais escuto hoje em dia é o que tem sido feito aqui em volta. E tem muita coisa boa. Eu gosto de acompanhar, e tem gente lançando quatro discos por ano, então nem é tão fácil arranjar tempo. Não vou fazer lista, prefiro passar o link desse tumblr chamado “uma banda nacional por dia” que uma amiga está fazendo esse ano, e é uma boa pra quem quer ficar ligado no que se tem feito no Brasil.
O autor deste texto tem 39 anos mas um corpinho de 35. É jornalista há mais de 15 anos. É colaborador de vários blogs e parvoíces afins e já escreveu para a Blitz e para a FHM. Nasceu e cresceu em Carcavelos, fazendo aí o mestrado musical enquanto todos os seus amigos andavam de skate ou faziam surf. Hoje em dia, divide o seu tempo entre as notícias de Economia e a educação dos seus três filhos, enquanto o mundo não percebe que ele é o maior escritor vivo do planeta, coisa que terá inevitavelmente de acontecer. Na próxima encarnação desejaria ser uma mistura entre o Serge Gainsbourg e o Pablo Aimar.