Podia ter sido escrito pós-2020, no rescaldo Covid-19. Mas não: este pesadelo ocorreu em 2010.
Eram outros tempos. Nem estávamos nos analógicos anos 80, com suados concertos no Orfeão da Foz do Porto ou Rock Rendez-Vous de Lisboa e mixtapes de mão em mão; nem na era da inteligência artificial dos 2020, uma espécie de finisterra da humanidade, onde nos acostumámos a consumir música através de playlists construídas por algoritmos atentos ao que consumimos na Temu há dois dias. Estamos no meio termo, em 2010: já ninguém ouve cassetes, mas ainda não existe Tik Tok. O meio de partilha mais analógico era digital (o CD-Rom) e canções já viralizavam (no Myspace). Vivia-se uma revolução indie e a política fervilhava, entre os drones do Obama e a hiperglobalização. A putrefação do futuro, o de hoje, já fedia na altura aos Mão Morta — e em Pesadelo em Peluche o ar tornou-se ainda mais irrespirável.
Com mais de 20 anos de carreira, os Mão Morta insistiram em escrever sobre o desencanto na globalização, um leitmotiv recorrente na discografia da banda. Como pano de fundo, a obra The Atrocity Exhibition de J.G. Ballard, romance experimental de 1970 que agrega pequenos contos sobre as desvirtudes do culto mediático. Contudo, ao invés de escrever sobre o assassinato de John F. Kennedy, Adolfo Luxúria Canibal deambula em “Teoria da Conspiração” obre outras conspirações televisionada:
“Os helicópteros afastam-se agora em direcção ao centro da cidade. Aproveito para atravessar a pista do aeroporto e desaparecer no bosque que a circunda; nas ruínas calcinadas do antigo bairro operário, não consigo deixar de me interrogar se a mortandade foi mesmo deliberada – como muitos vaticinam – ou mero acidente provocado pela ânsia de lucro e da colocação no mercado do produto mal testado. O certo é que a pandemia não passou dum colossal embuste mediático destinado a predispor o público à vacinação.”
Podia ter sido escrito pós-2020, no rescaldo Covid-19. Mas não: foi em 2010. Ao som de um caótico riff metaleiro em palm mute, Adolfo Luxúria Canibal prepara em spoken word o salto para um refrão rockabilly onde, de forma camaleónica e irónica, expõe a chico-espertice dos soberbos da internet que detetam conspirações em toda a notícia de telejornal. “AHAH, pois! Conspiração!”
A nível sónico, Pesadelo em Peluche é um disco de rock. Mas vai saltitante entre guitarras muito pesadas e estruturas pop, como Metalcarne e Novelos de Paixão, o single.
“É mais fácil perceber
Como voa um avião
É mais fácil antever
A chegada de um tufão
Do que achar num manual instruções pra deslindar os novelos da paixão”
Um dos melhores refrões do disco (e da carreira) dos Mão Morta. Também na gaveta pop está Estância Balnear, um voyeurismo crítico aos normies pedantes que, toalha ante toalha, selfie em selfie, carneirinhos do culto do corpo, sedados por cocktails clássicos variados, se amontoam na praia. “Muitos corpos escaldados / Estendidos uns sobre os outros / Como nacos de vianda / Nos balcões dos supermercados / Mais um dia sem demanda / Neste enfado” Curiosamente (e ironicamente), esta canção fazia parte de uma novela da SIC. Terá sido a Lua Vermelha? Já não me recordo, mas sei que os vampiros estavam na moda na altura. Por falar em Vampiros, o disco conta com uma participação especial de Fernando Ribeiro dos Moonspell, que deu uma toada gótica ao disco.
Em retrospetiva, Pesadelo em Peluche é assustadoramente profético e atual, e um tratado de vitalidade dos Mão Morta. Depois de alguns discos, torna-se difícil surpreender e manter a boa forma, muito menos depois de duas décadas. Pesadelo em Peluche é um dos melhores discos de 2010.