Da fogueira acenderam canções, dos ramos que atiçavam as labaredas baquetas fizeram, em xamânicos rítmicos ritos desconcertaram e convocaram índios, bestas e fadas. Esse era a história até 2004. Com Sung Tongs, lançado nesse mesmo ano, os Animal Collective mudavam as regras do jogo: pensavam o elemento humano, o acústico, o folclore como ferramenta sujeita a “samplagem”, corte, edição, desfiguração, transcendência para algo que, nas mãos certas, poderia ser o que nunca o conseguiria sozinha.
“This house is sad/Because he’s not/Inside it”. A benquerença da casa pelo dono que se ausenta – proferidas eram as primeiras palavras neste álbum. Haverá personificação mais bizarramente reconfortante, acolhedora ou aconchegante? Haveria, possivelmente, algo mais apropriado para dar início ao disco? Não. Pois o milagre deste álbum é – não obstante toda a manipulação e remodelação a que estão sujeitas todas as guitarras, percussões e vozes diversas – soar impossivelmente natural, biológico, feito sem uma segunda regravação: como se um grupo muito amigo nos tocasse pequenas pérolas em instrumentos e cantos ainda por existir, por decifrar, por amar. É um abraço calorento no qual nos podemos envolver. É-o por ser o mais aprazível, agradável e mais imediato do colectivo: não por ser orelhudo, mas por ser todo ele acordes abertos e melódicos, ritmos e harmonizações agradavelmente hipnotizantes, ritmos felizes sem nenhum som agreste ou faixa difícil – a acessibilidade como nunca houve, nem haveria, num disco da banda.
Um mundo é criado a cada lançamento da banda de Panda Bear, Avey Tare, Geologist e Deakin e este não é excepção – ainda que, em Sung Tongs, apenas participem os dois primeiros. Outonal, soa a pôr-do-sol âmbar reflectido por entre danças cadentes de folhas amarelas, na floresta de árvores esguias e altas, já meio-despidas, já meio-cantadas – tudo isto pela predominância da instrumentação acústica, dos coros e da forma como ambos são manipulados, fundidos, alterados, recortados para soar como a mais biológica manta de retalhos sonora. Soa pessoal, íntimo e altamente sensorial – a música ajusta-se à dimensão emocional das histórias cantadas. “Visiting Friends” recolhe-nos na envolvência drone intoxicante de uma tarde também intoxicada (“We were visiting friends (…)/Then getting stoned and not saying much/Watching the people on TV who talk faster than us”); as ligeiras deturpações rítmicas de “The Softest Voice” ecoam como rangeres na madeira da casa-refúgio do narrador (“I’ll stay inside (…)/Bombs outside”); a alegria dos acordes dançantes transpira a euforia infantil de um novo trilho descoberto na curta “Sweet Road”; o teclado em segundo plano zumbindo, empenado e distorcido de “Kids on Holiday” transporta-nos directamente para o incessante e atarefado ruído do aeroporto no qual o sujeito da canção espera; os ritmos tímidos de “Winter’s Love” evocam o tapear de pontas dos dedos numa janela, o slide míudo das guitarras o seu deslizar nos vidros embaciados – estes dois subtis elementos sónicos evocam, em conjugação com a embaladora melodia cantarolada por vozes distantes, o sentimento saudosista do narrador pela sua amada (“And winter’s love, where could she be…”). Magistral.
Sung Tongs é um álbum inteligentíssimo, filtrando as suas parcas referências musicais por caleidoscópios de cores quentes e jogos de espelhos partidos. O canto de Panda Bear, altamente recordativo da voz de Brian Wilson, aqui ainda se esconde, permanecendo num belo anonimato, misturada com a voz de Avey Tare. Todavia, independentemente da ainda-por-ser-descoberta voz de um dos seus vocalistas, o grupo já jogava com o som da banda de Wilson: “College” é toda ela uma anti-“Be True To Your School”, quer em sentimento, quer imaginando os Collective como uns Beach Boys freaks, mais soltos e selvagens. Por outro lado, a sombra de Vashti Bunyan pairava sobre a rapidamente extinta cena freak folk: artistas como Devendra Banhart, Joanna Newsom e os próprios Collective muito iam beber a Just Another Diamond Day por volta de 2004/2005, anos onde se consolidaria a relação entre influenciadora e influenciados, com Vashti a colaborar com os primeiros dois no seu álbum de regresso (o belíssimo Lookaftering) e a gravar um EP com Panda Bear e amigos (o essencial Prospect Hummer). A cantautora está incrivelmente presente nos acordes simples de “Visiting Friends”, nos dedilhares de “Mouth Wooed
Her” e “The Softest Voice”.
“O que ouço nos Animal Collective são crianças que sabem tocar instrumentos, música feita por crianças.”, contava-me, mais ou menos por estas palavras, uma amiga. No jubilo dos cantares agudos, que mal se contêm, lembrando o grito puramente feliz de um puto, em “Who Could Win A Rabbit?”, poderá alguém discordar da sua opinião?
É da infância o melhor mundo e é só do seu imaginário infinito e incansável que obras como Sung Tongs nascem e por nós vivem. Assim, tão eternamente como ser criança.
“Hey kids, let’s pick up sticks, let’s make out the sounds of our own.”