Começou a décima primeira edição do Primavera Sound Porto. O dia foi das mulheres. E do rock também. PJ Harvey arrasou, e ainda bem.
O despertar foi com as galinhas. Cedo, bem cedinho rumo à capital do norte para mais uma edição do Primavera Sound Porto. Fregueses desde há muitos anos, o Altamont fez as malas e partiu para nova aventura festivaleira. Três dias de agitação, música e o compromisso do costume: levar aos outros o que os outros nos dão. Ou melhor, levar até si o muito que iria acontecer nos palcos do Parque da Cidade. Alguns nomes de peso, alguns outros que se vão afirmando no panorama musical internacional, mas também alguns músicos portugueses que por cá vão começando a fazer algum furor.
E pronto, parece que mais uma vez vai manter-se a tradição: outono em plena Primavera. O que nos apraz desejar, tendo em conta o histórico que temos, é que o inverno não chegue e se instale nos próximos dois dias. E por falar em tradição, também este festival abriu com sotaque tuga. Ana Lua Caiano e Silly quase ao mesmo tempo, pelo que manda a lógica destas coisas que espreitemos uma e nos demoremos mais noutra. Decidimos ficar mais próximos de Silly, apenas porque Ana Lua Caiano já a temos visto com alguma regularidade. Assim, quase a meio do seu one woman show, lá fomos nós palmilhar terreno até ao Palco Primavera Sound. O que se ouviu, e isso já sabíamos, foram canções contemplativas, outonais (pois claro) e delicadas, como a velhinha “Cavalo ao Vento”, que fez vibrar o público mais conhecedor. Muitos gritos no fim da atuação desse tema e também no fim do concerto. Quanto a Ana Lua Caiano, foi o que costuma ser, sem que algum mal exista nisso. Música (im)popular portuguesa com eletrónicas de ritmos variados e fardos de palha a acompanhar. Foi assim que tudo começou. Ainda nem seis horas da tarde eram.
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Metemos o despertador para as 17.40, hora em que o rock explodiu no Palco Vodafone com os Royel Otis. Canções orelhudas, rápidas, uma espécie de bebida energética sonora. Precisávamos disso para sacudirmos o caruncho do Inverno aguado e frio. Limpar a alma ao sol das guitarras estridentes e meio desafinadas da banda, para que se perceba que ainda há rock de rua, mal comportado e estimulante. Pela primeira vez em Portugal, a banda apostou em “dancing songs” e foi bonito ver, no grande anfiteatro natural que dá para o palco, toda a gente a dançar uma qualquer dança feiticeira que muitas vezes anda de mãos dadas com o rock. Good vibes all over the place! Com uma canção a ganhar mais destaque do que quaisquer outras (“Going Kokomo”) por via do Primavera Sound Barcelona, a dupla australiana mostrou-se radiante por estar em palco e contagiou todos os presentes. É fácil simpatizar com estes down unders. Muito. E também não é difícil fazer gente feliz (sem lágrimas). Rock nos ouvidos e uma cerveja na mão.
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Depois, chegou a vez do rock mais alternativo. Num repente, estávamos nos anos 90. Viajar no tempo, afinal é bem possível. E sem jetlag. Rock mais aprumado, o dos Blonde Redhead. Com escola mais classy, mais cerebral do que a dos australianos. Como se usa dizer, depois da tempestade (de guitarras bem elétricas) vem a bonança, desta vez algo sombria da menina da raquete de ténis com muitas pernas. Lembram-se? Capa icónica de um belo disco. Mas ontem foi o muito recente Sit Down For Dinner que subiu ao palco. O morangão lá estava, por detrás, a mostrar que iria ser assim. Portanto, o passado a que aludimos há pouco, tornou-se presente, ontem. Confusos? É ler de novo para se orientarem. Talvez faça sentido à segunda. Se não fizer, resta uma certeza: ontem fez, e por isso a menção que fazemos aqui. “Falling Man”, “Melody Experiment” e “Snowman” estiveram no podium do concerto. Hooray for Blonde Readhead!
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A noite era do rock (assim como o final de tarde) e o prémio para os rockeiros mais apunkalhados teve de ir, sem hesitações, para Amyl and The Sniffers. Um autêntico cataclismo de som! Achamos que boa parte das pessoas presentes não estaria à espera de um tsunami assim. Mais uma banda do país dos cangurus a mostrar que é “lá em baixo” que o rock tem inúmeros casulos. O que dizer de Amyl e dos seus pares? Rock puro, vindo do fundo da década de 70 (meados, vá) e que cortam a respiração de quem os ouve. Os ouvidos ficarão a zumbir durante uma semana (e depois, como ouviremos Pulp, no sábado?!) perante os volts de tamanha atuação. No entanto, a linguagem dos Amyl and The Sniffers perpassa gerações e ontem vimos isso claramente. Menos crescidos, crescidos e todos os outros também, com o coração a tentar bater ao ritmo do da Amyl. É coisa impossível. Ficámos todos na mó de baixo. Derrotadíssimos. Caídos na relva. Knockout total.
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E eis que chegou, envolta em mistério, muito teatral, cenário minimalista (mesas e cadeiras como adereços de uma espécie de drama encenado), cantando como poucas, voz pura e cristalina que parece brilhar a cada sílaba entoada. Cada vez mais há Kate Bush em PJ Harvey. Para além da sua própria identidade musical, parece-nos certo que a menina que cantou “Wuthering Heights” se enraizou em Polly Jean. “The Glorious Land” e “Let England Shake” foram fabulosas! “The Words That Maketh Murder” também. Enorme canção! Cresce imensamente quando tocada ao vivo. Muito bom! Depois, os ânimos serenaram com a dolente “A Child’s Question, August”. “Send His Love To Me” foi outro grande momento, pois claro, vinda do ótimo To Bring You My Love. Foi muito bom ouvir a também velhinha “Black Hearted Love”, que há muito gravou com John Parish, que ontem fez parte da sua banda. Enfim, um concerto para degustar e chorar por mais. PJ Harvey parece estar na mesma, exatamente igual aos tempos de “Henry Lee”, o que é espantoso. Vida de artista pode ser dura e quase nunca é apenas “la la la la li”, cantarolável e encantatória. PJ Harvey já passou maus bocados, quase desistiu da música, mas aí está ela, elegante na voz e no resto, sublime até. E o que dizer de “The Garden”? “And he was walking in the garden /And he was walking in the night / And he was singing a sad love song / And he was praying for his life / And the stars came out around him”, a cantarmos quase em silêncio, uma oração como um novelo que se enrola para dentro, de tão íntima. Grande senhora e grande artista! Um cisne branco de aura negra debaixo de um céu sem estrelas. O dia – ou melhor, a noite – estava feita. Mas ainda havia vários concertos pela frente.
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Mitski começou com juras e mais juras de amor ao seus fãs e a gritaria não se fez rogada. Avisou que ia realizar um determinado papel em palco, e para que não a estranhássemos. No entanto, para nós, foi mais ou menos a Mitski que esperávamos. Provavelmente, o que mais se desejava ouvir eram “Nobody” e “Washing Machine Heart”, o que veio a acontecer, naturalmente. Por detrás da artista de aparência cordial e singela, as canções de Mitski, se as soubermos ouvir a preceito, estão repletas de sentimentos fortes e perturbadores. Ansiedades várias e mãos cheias de solidão. Talvez por isso, quem sabe, sejamos levados a algum tipo de catarse quando a vemos e ouvimos sem filtros, à nossa frente, entregando-se em palco como se estivesse em risco de se perder? Há ali uma camada de desespero inegável, e talvez seja essa uma boa razão para gostarmos dela. A arrepiante “I Bet on Losing Dogs” gerou a gritaria esperada e eram muitos a cantar os versos “My baby, my baby / You’re my baby, say it to me”. Bom e afinado, o coro de vozes anónimas em comunhão. Cheira-nos a milagre tik-tokiano. Deve mesmo ser isso, a avaliar pela gritaria. Repetiu-se em “First Love / Late Spring”. Foi bom.
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Belo cenário, o do concerto de SZA. Fumo azulado, um cais precário, antigo, das docas do fim do mundo, lembrando o imaginário dos filmes de Fassbinder, mas à maneira de Hollywood, série B. Muita dança e SZA a cantar e a dançar também. R&B meio pausado, com aquela ginga que a nova soul tem transportado para os grandes nomes norte-americanos que seguem esse estilo. Voz distorcida, por vezes, repentes hip-hop pelo meio. Grandes misturas, camadas de sons que nem sempre parecem ter propósito. O concerto de SZA veio destoar um bocado na noite de ontem, uma vez que a maioria dos concertos a que assistimos tinham, quase todos eles, uma forte pegada roqueira. Mas honra lhe seja feita, pois tinha vários milhares de pessoas a gritar por ela. Era uma clara cabeça de cartaz do primeiro dia do Primavera Sound de 2024. Sem lhe retirarmos o valor, e mesmo sabendo que o nosso gosto não deve prevalecer sobre o dos outros (e eram muitos, como já dissemos, os rendidos à artista americana), não era este o tipo de concerto que nos apetecia ouvir. Mas fizemos o nosso papel e tentámos perceber a razão que nos escapava. Mais uma vez, os ares do tik-tok fazem milagres e produzem deusas e deuses, elevando-os ao Olimpo. Ao mesmo tempo, multidões de crentes prestam-lhes vassalagem. Nós, pelo menos por enquanto, vamos de forma desconfiada à procura de qualquer coisa mais profunda. E isso pode demorar algum tempo, pelo que o tempo de ontem passado a ouvi-la poderá ser adjetivado assim: agradável e simpático. Àquela hora, “nós era mais frangos”, era isso que desejávamos.
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O início instrumental easy bossa prometia. E depois, lá apareceu a menina Ana eletrificada “arranjando maneira de se divertir”, divertindo-nos também. Sempre do seu jeito, sempre desengonçada, abriu com “How are you? Brincadeirinha, porra, isto é Brasil!” Não são exageradas as vozes que referem que Ana Frango Elétrico é a nova Rita Lee. Nada mesmo. Sentimos que a voz e o ritmo da senhora que lançou perfumes ao mundo está presente no espírito de Ana, sem dúvida. Como se a artista quisesse ser porta-voz da voz que há pouco nos deixou. No entanto, também se escuta algo de Marcos Valle e de João Donato, por exemplo, em alguns dos momentos instrumentais. Mas Ana Frango Elétrico merece ser vista de outro jeito, do seu próprio e particular estilo, a meio caminho entre a saudosa estrela do rock mutante brasileiro e outra coisa ainda sem nome e sem lugar. De uma coisa estamos certos: Ana tem algo para dar à nova música popular brasileira, mesmo que este rótulo já pouco ou nada queira dizer. Ana Frango Elétrico quer apenas “transar com você” e até o pede delicadamente, quase segredando ao nosso ouvido, com a expressão marota que lhe conhecemos. Me Chama de Gato que Eu Sou Sua esteve na base de todo o concerto e por isso fomos cantando alguns dos seus versos mais orelhudos. Foi um belo fim de noite. Num dia em que as mulheres estiveram em grande destaque, o escriba masculino do Altamont despede-se, saudando todas as criaturas (mulheres e homens) que nos fazem felizes através da música. Bem hajam!
Fotografias: Hugo Lima – Primavera Sound Porto