Custou, mas foi! Sete anos depois, o Altamont foi até Santa Maria de Lamas para conhecer um dos festivais mais excitantes do país. Atraídos por um cartaz de luxo, galgamos a A1 contra a corrente para descobrir que a boa música alternativa escorrega ainda melhor quando é servida acompanhada por um rico cenário cultural, uma envolvência comunitária de sorriso no rosto e um jardim perfeito para piqueniques!
Para a edição 2024, a Basqueiro Associação Cultural desenhou um extenso programa de atividades culturais, que tentámos aproveitar ao máximo, marcado pelo ecletismo, bom gosto e uma pontualidade de causar inveja aos britânicos mais conservadores. Alternando entre os palcos da Tendinha dos Clérigos e o Museu (de Lamas), 14 bandas encheram-nos de música num ritmo frenético com intervalos arquitetados ao milímetro para os necessários reabastecimentos.
Sexta-feira, 14
Coube aos Trasgo a honra de abrir o Basqueiral 2024, e se havia algum pozinho de nervosismo naquelas cinco jovens almas, o mesmo terá ficado soterrado pela pisadela sónica aplicada logo assim, a frio … sem aquecimento e ainda com os copos vazios. Tal como já tínhamos espreitado nas 4 faixas disponíveis no soundcloud e em alguns vídeos no Youtube, o noise experimental dos Trasgo casa a barulheira (no melhor sentido do termo) com momentos de aparente acalmia, rasgos de surtos punk e muita teatralidade. Como em todos os casamentos, há alturas em que a harmonia está mais presente do que outras, mas desconfiamos que a harmonia não deverá ser um objetivo atual da banda, até pela confusão (outra vez, no melhor sentido) que vai aquele guarda-roupa.
O som dos 800 Gondomar traduz a cumplicidade que mostram em palco. Uma relação de partilha que faz deste, um trio maravilha, que vai debitando o seu garage punk sem complexos, sem presunções e, felizmente, sem o mínimo respeito pelas convenções. A banda nortenha despreza a caixa, sai do palco e trepa às árvores … para partilhar alegria e microfones enquanto nos afaga o coração e beija os ouvidos.
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Desenganem-se aqueles que os viram na Expo 98 e que, 26 anos depois, os adivinham mais apaziguados, mais acomodados … mais Zen! Pelo contrário, e tal como já tínhamos podido testemunhar em fevereiro, a banda apurou, regenerou-se e desalinhou todos os chakras! Está melhor que nunca! Entre a energia imparável de Rui Silva (aka Gon) e o engenho dos seus mosqueteiros, os Zen conquistam o palco que pisam. Sintomático disso são as vozes dos mais novos e dos mais velhos que, em uníssono, cantam as letras que nos desafiam ao privilégio de fazer as coisas erradas. Vê-los, pelo contrário, foi das coisas mais certas deste primeiro dia de festival.
Pode não soar propriamente a um elogio, mas podemos jurar a pés juntos que o é! É muito fácil gostar dos Tramhaus É certo que são cinco num palco pequenino para tantos, mas não se atrapalham. Complementam-se e harmonizam-se, que nem cerveja e amendoins! Cúmplices e de sorrisos abertos, começam por seduzir o público com o seu post punk banhado a vibrações dançantes, incrustado com cortinas de shoegaze e interrompido por ataques de selvajaria punk. Tudo, no entanto, feito com a maior leveza deste mundo … ao ponto de temermos que Lukas Jansen saia disparado do palco em saltos de gafanhoto. Depois de um bom punhado de singles editados nestes últimos dois anos, a banda de Roterdão deixou-nos a salivar pelo primeiro registo longa duração que, se tudo correr bem, chegará ainda este ano.
E se, de repente, fossem engolidos por um buraco negro e dessem convosco a dançar … é porque estariam num concerto dos Máquina. Sons construídos sobre sons e intensidades sobre intensidades, e quando damos por nós, já estamos no meio dessa extraordinária voragem que nos põe a mexer sem resistência. Uma viagem pela escuridão, que fascina e nos impede de parar.
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Ainda mal recuperados da festança patrocinada pelo trio lisboeta, voltamos ao Palco Museu onde a leveza dos Tramhaus é trucidada pela aspereza violenta dos Bad Breeding! Sabemos que o trocadilho é fácil, mas tem que ser dito, não é por má criação, a violência deste quarteto britânico é oriunda apenas da convicção anarcho punk da banda … que extravasa as letras e se infiltra numa abordagem sónica aparentemente esquizofrénica resultante do combate entre ritmos e vocalizações punk, manchas noise provenientes do baixo e riffs tresloucados do metal mais subterrâneo na guitarra. Não sendo uma experiência fácil, é intrigante e desafiadora. A propósito, Contempt, o quinto álbum da banda saiu precisamente na sexta, e já está na nossa playlist!
Sábado, 15
Mais do que um concerto, uma verdadeira experiência poética. Através da multiplicidade de sons que conseguiu extrair do seu violoncelo e da sua voz, Joana Guerra convocou-nos a mergulhar com ela em sítios escuros e melancólicos. Fomos levados para lugares estranhos, tristes, mas tão bonitos. E, se atentarmos que o concerto decorreu numa capela revestida a talha dourada, percebemos o quanto este foi um momento de ouro, de brilho e de resplendor.
Ouvi-los pela primeira vez pode não ser tarefa fácil porque, desde o primeiro momento, há uma ruptura com aquilo que se está à espera de ouvir. Não é jazz, não é punk, não é noise. Mas também é! As dUAS sEMIcOLCHEIAS iNVERTIDAS são, tal como o nome denúncia, uma banda complexa. Ouvi-los é uma experiência de desbravar as nossas expectativas e de sermos confrontados com a maturidade de quem arrisca tudo o que tem para dar em palco. E quando se percebe isso… ao invés de nos perdermos na diversidade de sons em que invadem os nossos ouvidos, passamos a agarrar esse momento mágico como um todo. Um acontecimento extraordinário de metamorfose do nós com a admiração pelos quatro músicos que fazem música como se fossem muitos mais.
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Saídos diretamente da primeira fila das semicolcheias para cima do enorme palco da Tendinha dos Clérigos, os Galgo estariam tão atordoados como inspirados! Pode até ser impressão nossa, reforçada pelo acentuado arrefecimento noturno, mas a coisa parece ter demorado um pouco a aquecer. Nada que o talento e a experiência do quarteto lisboeta não consiga dar a volta com a sua mistura sónica muito própria e a garra que os caracterizam. Com Denso cá fora desde o início do ano, foram intercalando novas e “velhas” malhas numa manta confortante para, no fim, ficarmos a sonhar com o futuro, retemperados com o seu calor!
Se, por vezes, precisamos de um empurrãozinho para avançarmos, ouvir “Brisas” do recém editado Besta terá sido um verdadeiro pontapé no rabo para nos pormos a caminho do Basqueiral. Quem ainda não ouviu, não sabemos do que estará à espera, mas uma coisa podemos garantir. Não vos vai deixar minimamente preparados para um concerto deste par de galegas (aparentemente) pouco dadas ao folclore celta e às gaitas de fole! É certo que antecipávamos uma mistura pujante de sons pesados dos anos 90 (grunge, punk metal e stoner) debitados sem misericórdia e sem saudosismos. Confirma-se, e a fabulosa versão de “Territorial Pissings” quase no fim do concerto das Bala veio dar cabo de alguma dúvida que ainda pudesse resistir. Do que, muito sinceramente, não estávamos à espera, era que aquelas duas almas mais rijas que aço, fossem capazes de emanar um som tão cheio e tão satisfatório (como se diz agora) com recurso apenas a uma guitarra, uma bateria e duas vozes de tons complementares … e a toneladas de energia. Numa palavra, avassalador!
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A forma mais próxima de descrever o concerto de Sturle Dagsland no Basqueiral, é imaginar a dupla de músicos noruegueses acabadinha de sair de uma floresta negra carregados de instrumentos artesanais construídos a partir daquilo que a natureza oferece – é certo que avistámos alguma parafernália eletrónica espalhada pelo chão do palco, mas não estraguemos a lenda!. Talvez tenha sido a atuação que mais se distanciou das restantes, não só pela abordagem sónica despida de guitarras distorcidas e baterias galopantes, como no geral, pela pouca conformidade com a estrutura típica da canção pop rock, mesmo que muito alternativa. A multiplicidade dos já referidos instrumentos, e sobretudo a utilização de registos vocais plenos de cliques e outras onomatopeias, em conjugação com uma presença cénica mais próxima de um bailado contemporâneo, contribuíram para agarrar a multidão em frente da Tendinha dos Clérigos.
De volta ao palco Museu para mais uma sessão de “como o registo ao vivo de uma banda pode deitar por terra muitas das expectativas construídas pela audição de discos”. Nails não só não nos passou ao lado, como terá sido um dos nossos álbuns preferidos de 2023. Estávamos, portanto, preparados para uns Benefits politicamente ativos (e ativistas), sustentando o registo spokenword (aqui e ali próximo do hip hop, ali e aqui próximo do punk) numa cama de eletrónica (muitas vezes abrasiva) e na alternância entre ritmos sintéticos com outros orgânicos. Mal comparado, imaginávamos que num universo paralelo, Zack de la Rocha teria nascido e crescido num subúrbio deprimente do norte da Inglaterra à base de uma dieta sónica muito pouco solarenga. Não é que tenhamos estado assim tão ao lado, mas a intensidade empregue por Kingsley Hall em palco chega a ser intimidadora. De repente, a referência aos Rage Against the Machine passa apenas a fazer sentido pela ideologia da revolta e, somos quase que obrigados a resgatar a imagem que fomos construindo na nossa cabeça de Henry Rollins nos seus tempos nos Black Flag. Intensidade parece até ser uma palavra muito comezinha para descrever o que sentimos, sobretudo porque o registo de enxurrada emocional que Kinsley utiliza para exprimir as suas ideias sobre uma Inglaterra embrutecida pela narrativa e pela lógica neo liberal populista ou sobre a causa Palestiniana, surgiu amparada pela referida eletrónica abrasiva e, sublinhamos nós, por um exercício magistral de bateria a roçar o free jazz e o noise.
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Por falar em regressos, saímos de Santa Maria de Lamas com a sensação de que a uma da manhã será a hora do Buraco Negro no Basqueiral. É que, se no dia anterior os nossos corpos tinham sido engolidos pelo som dos Máquina para um frenesim dançante, no sábado, foi a vez dos Butch Kassidy nos raptarem a mente para uma viagem alucinante … sem recurso a qualquer tipo de substâncias proibidas. O quinteto britânico deve ser das bandas mais furtivas que conhecemos – uma faixa nas plataformas, uns vídeos de concertos no Youtube e pouco mais! Surpresa garantida, portanto. Mas não é o inesperado que nos cativa, e sim as suas composições! O que é mais interessante é que, por momentos, nos assustam e chegamos a temer entrar em mais uma sessão de post-rock soporífero à laia de uns __________________ (preencham de acordo com as vossas susceptibilidades), para sermos socorridos por texturas proggy, ondas de violência sónica próximas do noise e orgasmos rítmicos da estirpe metálica.
E eis que… quando se pensa ingenuamente que as luzes do palco não foram preparadas a tempo (o que seria a primeira falha a apontar a este festival) o inesperado acontece no meio de penumbra. Fotocopia, um artista espanhol que surge a sós com um computador, uns botões onde vai carregando e um micro iluminado, vai disparando sobre nós gritos de revolta acompanhados de um crescendo de batidas rítmicas que põe inevitavelmente a dançar o público que o circunda. Batidas e movimentos, intensidades e corpos a mexer que evocam as noites doidas de Berlim.
Não temos provas científicas, mas temos uma forte convicção que o número de festivais de música por este país fora é considerável e vai crescendo. Enquanto uns procuram mais visibilidade mediática, maiores audiências e cartazes sonantes plenos de apostas seguras e nomes consensuais, o Basqueiral (e outros que temos tido a sorte de conhecer) almejam construir alternativas e promover artistas emergentes. O que importa é que possamos continuar a escolher!
Texto: Irina Duarte e Rui Gato || Fotografias: Rui Gato