O quarto disco de Youth Lagoon, Heaven is a Junkyard, junta melodias viciantes a uma perturbadora melancolia. Uma das grandes surpresas de 2023!
Têm-se escrito muitos disparates a propósito do novo disco de Youth Lagoon. Primeira irrelevância: ah, e tal, antes o homem assinava como Trevor Powers, e agora voltou a ser Youth Lagoon, porque será? Boring… Segundo não assunto: o homem teve recentemente uns problemas de saúde lixados; em que medida é que este álbum reflecte o confronto com a sua mortalidade? Seca… Manobras de diversão dos críticos, essa cáfila! Ora até o meu barbeiro sabe que a pergunta a fazer é outra. Porque é que Heaven is a Junkyard é, de longe, o seu disco mais inspirado? Eis a questão.
Comecemos por explicar os seus antecedentes clínicos. Trevor padecia de uma forma severa de hipsterismo (coitado!), turvando deliberadamente a sua estética (mais atmosférica do que melódica, com produção lo-fi e a voz soterrada na mistura) de forma a que apenas meia dúzia de hipsters iluminados pudessem “entender” a sua superior sensibilidade. Powers reprimiu assim, com um estoicismo tão admirável como idiota, o seu principal talento: escrever bonitas melodias orelhudas, com palavras cuidadosamente trabalhadas. Só agora, com o viciante Heaven is a Junkyard (não conseguimos deixar de o ouvir em repeat!), é que Powers confessa (visivelmente embaraçado!) o seu amor ao formato-canção.
A produção é espaçosa e orgânica, de um irrepreensível bom gosto. A sua voz, antes distorcida com baldes de reverb, está agora ao natural, trémula e andrógina mas verdadeira, sofrida e rugosa mas sem quaisquer truques. Os timbres acústicos dominam, a começar pelo seu piano dolente, e até a ocasional manipulação electrónica (destaque para os samples vocais à Burial, tão espectrais como nostálgicos) sabe a coisa pura e viva.
A melancolia é a de sempre, agora com poesia à sua altura, sem uma única sílaba fora do sítio. O imaginário religioso é omnipresente (Trevors cresceu numa comunidade cristã no Idaho), a América profunda que retrata é sempre assombrada por Deus. As suas personagens destruídas moram no fio da navalha (ora enganadas por demónios velhacos, ora amparadas por anjos salvíficos). As small towns onde tudo acontece, soalheiras à superfície, escondem os mais indizíveis segredos (crimes hediondos, violências inonimáveis….). Perdido em toda esta escuridão, Trevors pergunta em “Mercury” se o paraíso brilha. E nas entrelinhas responde: brilha, pois, mas nunca onde esperamos. Como um triciclo abandonado num feiíssimo ferro-velho. De onde vem aquele reflexo dourado, aquela misteriosa luz?