O segundo álbum das Golden Slumbers, I Love You, Crystal, solta-se da camisa-de-forças do puro folk, abrindo-se ao indie e à dream pop.
As Golden Slumbers são duas irmãs com vozes de anjo, que harmonizam como quem sobe aos céus. Portuguesas de gema, cantam na língua de Lennon e McCartney só porque sim. Perdoamos a afronta. É tão bom que até parece estrangeiro…
Começaram na folk pura e dura, primeiro com o cristalino EP I Found the Key, de 2014, eram ainda adolescentes; depois, apurando a sensibilidade com o álbum de estreia The New Messiah, de 2016, produzido por Benjamim. Um disco quente e orgânico, acústico e frugal, piscando o olho à mítica Laurel Canyon dos anos 60 e 70.
Porém, as manas Falcão não são siamesas; têm também percursos criativos independentes. Margarida, a mais nova, foi a que mais se afastou da estética dos Golden Slumbers, ao emprestar a sua voz à pop electrónica dos Vaarwell, já com dois EPs no papo (Love and Forgiveness, de 2015 e Early Rise, de 2019) e algum sucesso no circuito londrino. Catarina Falcão, através do alter-ego Monday, não se distanciou de uma forma tão radical da matriz folk, mas foi reinventando também a sua linguagem: o seu álbum de estreia, One, de 2018, tem uma agressividade quase roqueira; e o EP Room For Wall, de 2020, namora com o indie e o R&B.
De maneira que quando as Golden Slumbers regressam aos discos, seis anos depois, com o bonito I Love You, Crystal, levam todas estas experiências na mochila. Por isso, não nos espantamos com a evolução. Margarida tem agora uma voz mais madura e desenvolta. Catarina está mais à vontade na guitarra eléctrica, sua fiel companheira enquanto Monday. As meninas de outrora são agora mulheres feitas.
Mas não foi fácil chegar ao produto final. Experimentaram quatro produtores, sempre insatisfeitas com o caminho encetado. Até que se lembraram do óbvio, repescando o mago Miguel Nicolau (mentor dos Memória de Peixe e produtor no último disco do JP Simões enquanto Bloom), que já havia co-produzido Room For Wall, de Monday, com excelentes resultados.
No centro continuam as canções, e as doces harmonias, mas a maior maturidade do conjunto é evidente. A sensibilidade orgânica não desaparece, acolhendo bem os intrusos de plasticina, dos sintetizadores ao reverb que tudo ensopa de sonho e letargia (uma herança feliz da dream pop). O afastamento em relação ao purismo folk revela-se também num flirt feliz com o indie rock, especialmente nos elegantes arpejos de guitarra à Smiths e REM.
A beleza quase ofuscante das vozes é cortada por uma tensão subterrânea – um feedback de guitarra ali, uma dissonância nas teclas acolá. É fácil identificarmo-nos com essa ambiguidade, pois ela define o nosso tempo: por debaixo do verniz de conforto, esconde-se um medo vago de um apocalipse que há-de vir. Mas não se assustem: é a beleza que impera. A beleza de duas vozes límpidas e celestiais entrelaçando-se no jardim do Éden, indiferentes ao olhar vítreo da sempre rondante serpente. Estamos em crer que é esse o maior contributo de Miguel Nicolau para o cozinhado: conseguir captar em fita o milagre destas duas vozes. Como a água puríssima a jorrar da nascente.