O segundo dia do festival à beira rio Coura entumesceu-se de sol, bom som e mais cabeças festivaleiras. O primeiro concerto, do cantautor norte-americano Riley Walker, deu-nos a provar o mais amargo dos travos pós-concerto: o sentimento de que poderia ter sido mais especial do que realmente foi. Construtor de enormes improvisos, autêntico mestre na guitarra, a Walker faltam-lhe as canções – fórmulas folk já vistas e revistas por tantos antes dele, o cheiro a mofo quase que tresandava. Mas assim que abandonava o formato canção e se entregava antes ao puro abandono exploratório das jams, era imparável. A bateria a picar nos pratos em meticuloso fervor, o baixo a enquadrar melodicamente o caos controlado da guitarra e percursão que o acompanhava. Um trio mais do que competente desperdiçado por, quem diria, as suas próprias canções. Exigia-se mais ao testemunhar o que poderia ter sido.
A meio desta meia-desilusão, Joana Serrat estreava muito modestamente o palco secundário (Palco Vodadone Fm). O “indie folk” formulaico e repetitivo já começa a provocar comichão que roça a micose e rapidamente criam-se anti-corpos a quem conhece melhor. Clica-se numa playlist de Spotify com título semelhante a “Sonhar Acordado” ou talvez “Momentos Únicos” e aparecerão 50 Joanas Serrats. Chato, aborrecido, anónimo. Não há pachorra.
Para nos salvar de todo este inferno blasé, os Whitney ofuscaram na totalidade tudo o que poderia ser abjecto ou repulsivo até então. O Verão pertence às solarengas e bem-dispostas aventuras microscópicas, juvenis e bem-humoradas dos Whitney, compostos por ex-membros dos Smith Westerns e Unknown Mortal Orchestra, com intenções semelhantes na sua pop à da dos Girls: joie de vivre encapsulada em docinhos pop rock bem-comportados e luminosos de 3, 4 minutos. E a felicidade é uma arma quente, já cantava o outro. “We love your country.”, partilhou Julien Ehrlich, simultaneamente baterista e vocalista da banda, antes de lançar a banda para a inspiradíssima “Dave’s Song”. O bom humor do vocalista levou a bom porto os festivaleiros, sempre sorridentes e atentos aos comentários do mesmo. Classificá-lo-ia, como disfarçada, não dissimuladamente, tímido, comedido o suficiente para transparecer a ligeira aversão a lugares comuns como “Keep on the lovin'” e outras frases feitas de bandas que nascem e morrem num verão. Mas é talvez isso que distancia os Whitney dos seus pares: são algo mais, uma máquina coordenada e talentosa, de enorme capacidade nos respectivos instrumentos. Deita-se o baixista Josiah Marshall sobre Ehrlich para um beijo apaixonado na boca do palco e segue-se uma potente improvisação, com destaque para o virtuoso trompetista Will Miller. Umas canções à frente, o baterista confessar-se-ia como solteiro e os risos estampados na cara dos festivaleiros. Max Kakacek, guitarrista melódico, deixa todos de boca semi-aberta (isto de ser gentil e comedido e tocar indie rock bem comportado não permite pirotecnia) repetidas vezes, em especial no motivo que lidera a bela “Light Upon The Lake”, antes advertida pelos músicos como canção que poderia resultar mal. Nem por isso, correu tudo bem. E quando nos recolhermos hoje à noite na tenda, abrigados da chuva imbecil, os Whitney regressaram à memória e diremos para nós também: “Tudo correrá bem.”
Quem não partilha desta visão são os Sleaford Mods, banda que de seguida tomou de rajada, infestada de asco e de raiva, o Palco Vodafone. Vinham armados de um portátil e de um microfone. Foi tudo o que precisaram para cuspir na cara de… bom… basicamente tudo. A banda mais punk que alguem verá em 2016 é composta por dois elementos: Andrew Fearn, que clica numa barra de espaços, onde daí inrompem batidas apenas suportadas por baixo e o eventual sintetizador discreto, ficando, pós-clique, a abanar a cabeça, praticamente imóvel; Jason Williamson, o vocalista, “limita-se” a falar rapidamente, gritar, uivar, guinchar, murmurar, entre outros que tais com terminação -ar. Isto tudo como revolta contra qualquer tipo de convenção social, política, filosófica ou até musical, apesar da pátria natal Inglaterra ser ódio de estimação e alvo de tiro predilecto. “Say hello to Little England”, apela Jason à audiência, completamente curvado, segurando o apoio do microfone tal criança tímida se trata-se, “Little England says she always tought she was better than you.” Uivos e assobios de desaprovação ocupam o anfiteatro Courense. Mas quando Jason e Andrew pedem, da sua parte, desculpa pela existência da “pequena” Inglaterra, uma ovação enorme estala encosta acima. Políticos e agressivos, irreverentes e inconformistas, os Sleaford Mods conquistaram o coração e ancas dos festivaleiros.
Os Algiers incendiavam, entretanto, o palco secundário. Fundido fervor gospel – a euforia que provocavam as palminhas – com as batidas marciais dos Suicide, embrullhando tudo numa violência selvagem garage rock, o vocalista Franklin James Fisher liderou os novos convertidos de Coura à transcendência absoluta, numa experiência intensa e inesquecível. Novas malhas foram desferidas, não tocadas, como se fosse a última vez. “Old Girl” irrompeu entre abanares de mãos e tremores de corpo, a guitarra de Lee Tesche manejada com um arco de violino, a distorção incontrolável tornada melodia cortante. “Irony. Utility. Pretext.” levou-nos à no-wave nova iorquina dos anos 70, “Blood” ganha outra pulsação em concerto. E depois de “And When You Fall” deitar a casa abaixo, “Black Eunuch” levou à participação máxima do novo coro dos Algiers – o público que os assistia. Assim deve ser o rock: poderoso, experimental, aventuroso, consciente do que lhe precedeu mas pronto a inovar. Inesquecível.
Após os Thee Oh Sees destruirem tudo à sua frente no Palco Vodadone, trazendo a electricidade garageira de São Francisco para Coura, era chegada a hora dos LCD Sounddystem.
“But I’m losing my edge to better-looking people with better ideas and more talent.” Será? O icónico primeiro single dos LCD Soundsystem “Losing My Edge”, onde James Murphy lamenta já não estar dois passos à frente de toda a gente na cena musical, não corresponde à realidade. Os LCD Soundsystem não são uma máquina bem-oleada – isso implicaria que algo no seu concerto envolveria sequenciadores ou outros dispositivos que repetiriam qualquer som ou batida. Mas não. Os LCD Soundsystem são um organismo vivo, pulsante e imensamente, colossalmente enérgico: tudo o que se ouve é tocado no momento com verve e nervo, com ânsia de transfigurar e amplificar todas as suas canções em concerto, verdadeiros hinos da pista de dança. Será isto não estar dois passos à frente? É inútil ponderar se valeu a pena a banda ter regressado dos mortos: basta vê-los ao vivo e um colossal sim é-nos estampado à frente dos olhos ofuscados por uma imensa bola de espelhos. James Murphy permanece um dos vocalistas mais singulares de que há memória, a capacidade vocal residente na quantidade de emoção necessária para a canção tocada: tanto vibrato no falsete, como aguentar 15 segundos uma nota, como falar pelos cotovelos, como berros punk histéricos. Tão comunicativo e empático como as suas histórias, tornou o ambiente mais amigável, comunal. Pat Mahoney é dos bateristas mais incansáveis da actualidade, capaz de manter uma batida incessante e levá-la um bocadinho mais longe no que deduzimos ser o seu limite – é prodigioso. Nancy Whang pressiona as teclas como ninguém e é bom vê-la de volta à banda onde melhor expõe o seu talento. Banda reunida, em topo de forma, então que dizer do concerto? “Us V Them” dá o mote e até os que desconhecem cantam “The time has come, the time has come…” “Daft Punk Is Playing At My House” explode com uma força inacreditável e o recinto metamorfoseia-se em rave descontrolada. “I Can Change” puxa a lágrima dos fãs, unidos em cantoria. “Get Innocuous” e “You Wanted A Hit” demonstram o poderio da banda como locomotiva de dança, experiente nos melhores breaks e crescendos imagináveis. “Tribulations” e “Movement” levantam a poeira até à estratosfera. Por entre uma “Yeah” insistente e titânica, uma “Dance Yrself Clean” magistral e uma sentida “New York I Love You, But You’re Bringing Me Down”, entre muitas outras oferecidas irrepreensivelmente, gritou-se no final uma questão: “Where are you friends tonight?” Muitos deles, não sei. Mas gostaria que estivessem aqui.
“If I could see all my friends tonight.”
*Fotos, gentilmente cedidas por Hugo Lima, em actualização