Entre verdes entre ventos, entre ventres alimentados à grossura do dente, ameaçados pela precipitação matinal – essa que não marcou presença volvida a hora dos concertos – os campistas da Praia Fluvial do Taboão acorreram, em menor número do que o ano passado, ao recinto do acarinhado Vodafone Paredes de Coura, nesta que é a sua vigésima quarta edição, deixando os acordes dançar cóclea adentro, rodeados pelo encantador anfiteatro natural, berço do palco principal ou Palco Vodafone, onde se realizariam todos os concertos de ontem.
“Decidimos fazer uma pausa.” confessava em primeira mão André Tentugal, vocalista dos We Trust, à multidão que congregava no lusco-fusco. “Foram 5 anos.” E, segundo o que nos disse, por entre algumas lágrimas, “tudo começou ali, no palco secundário.” Ouvia-se um bem-humorado e satisfeito requiem: o último concerto dos We Trust e, simultaneamente, o primeiro da edição do festival em 2016. Os sopros e cordas da orquestra juvenil local Coura All Stars deu outro brio aos hinos pop facilitistas, imediatos, um tanto ou quanto xaroposos da banda, acrestando drama, delicadeza e dimensão em doses acima do esperado. De facto, o momento mais singular e arrepiante do concerto foi-nos oferecido exclusivamente pelos jovens convidados, banqueteando no quase-silêncio o festival com a breve e esvoaçante “Fading (Chapter One)”. A receção da audiência foi, no mínimo, calorosa. Seguiu retumbantemente “Once At A Time” com ajuda preciosa das vozes do público e “Time (Better Not Stop)” fez das palminhas a melhor arma rítmica possível. Contudo, mesmo com coro de crianças a elevar as canções a balofas proporções barrocas, é impossível esconder a fórmula pouco diversificada das canções, algo descartáveis, repletas de lugares comuns sónicos e líricos. No final, “Silent Song” fez o seu refrão de oh-ohs perdurar até muito depois da banda, orquestra e coro terem abandonado o palco. Entrenimento barato, dir-se-ia, um tempo muito bem passado não lá muito compensador.
De seguida, a noite trataria de se deitar sobre Coura. E quão serpenteante e sedutora era a banda-sonora oferecida pelos Best Youth. Companheiros de estrada e estúdio dos We Trust, mostraram-se claramente a parte mais captivante e estimulante do já defunto duo formado pelas duas bandas, There Must A Place. Sobre o crispado e assertivo ritmo dançante da secção rítmica, num funk polido, mais de bom gosto e bem estudado do que aventureiro ou inovador, Ed Gonçalves manteve as suas 6 cordas sempre ao serviço do mais estimulante groove, brindando-nos, como antítese (ou antídoto?) com breves solos poderosos e electrizantes, enquanto a outra metade dos Best Youth, Catarina Salinas, vocalista em topo de forma, agigantava o mais tímido dos passos de dança, os seus gentis e pacientes sussuros motor das ancas e reflexo da sensualidade dos sons, razão e causa da inquietude dos presentes da primeira à última nota. Dos trotares galantes e discretos de “Hang Out” e “Red Diamond”, à colaboração vibrante com Moullinex em “In The Shade”, dedicada ao mesmo, fechando com uma rendição saltitante e futurista de “My Moon My Man” da cantautora canadiana Feist, os Best Youth fizeram-nos, no seu curto tempo de antena, agradecidos e voluntários escravos dos seus ritmos nocturnos e luxuriantes, sob a guarda de luzes fugidias e discretas.
Às 22:45, perguntávamos: quem são os Minor Victories? Qual o seu propósito? A marca de água de Rachel Goswell ficará para sempre indelével ao escutarmos shoegaze graças aos seus Slowdive, Stuart Braithwaite figurará nas fileiras do cânone rock instrumental com os Mogwai, Justin Lockey continuará a fazer umas massas a pilhar o som dos Interpol na companhia dos restantes Editors (nada contra). Todos estes têm o seu lugar na cultura do rock dito indie ou alternativo, o seu quê de status. Não obstante o tom saudosista, cinzento e sério da sua música, Minor Victories é nome apto, ligeiramente auto-parodial para rotular o projecto secundário destes músicos: algo que não lhes trará necessariamente mais fama ou fortuna, porém algo incrivelmente satisfatório e proveitoso de se presenciar – uma vitória menor, um papel certeiramente arremassado para o caixote, testumunhado por um restrito grupo de curiosos. A agressividade transcendente dos Slowdive, as punitivas e colossais apoteoses ruídosas dos Mogwai, a sensibilidade pop com a veia rítmica post-punk dos Editors – é resumido assim o som dos Minor Victories, recebido pelos festivaleiros de modo mais atento e recatado do que histriónico. Abrindo com “Give Up The Ghost”, Goswell volta assim a presentear o anfiteatro natural de Coura com o seu hipnotizante e dulcíssimo suspiro de voz pelo segundo ano consecutivo (Slowdive marcou presença o ano passado). A gentileza e brandura da sua entrega molda um constraste prazenteiro com o soturno tom de alguns temas, que, ao absorverem o empático calor das contribuições da vocalista, tornam-se mais aprazíveis e excitantes, como as abrasivas “Scattered Ashes” ou “Clogs”. “Out To Sea” encerra o concerto numa torrente de ruído colossal, deixando os músicos no palco um drone insistente, resultado da reverberação fortíssima dos seus instrumentos. Rock transcendente, de uma potência e escala fora do comum, tão feito de crescendos surreais como catarses bem palpáveis.
Os Unknown Mortal Orchestra foram recebidos, tocaram e saíram de palco tal U2 na apogeu artístico da sua carreia (leia-se: Achtung Baby): verdadeiras estrelas de rock, tão seguros do reconhecimento instantâneo das suas canções – essas pequenas jóias de pop psicadélica – que se dão ao merecido luxo, ajudado pela sua enorme virtuosidade, fluidez e capacidade, de brincar com os seus sons – moldá-los, acelará-los, extendê-los, fazê-los a todos mais grandiloquentes, ritmados, versáteis e pegadiços. A banda, agora acompanhada pelo exímio teclista Quincy McCrary, constitui-se assim como um grupo de quatro ao invés do antigo formato trio, encontrando-se mais intrincada e imparável do que nunca. Assim se provou na exibição incendiária de destreza do vocalista Ruban Nielson na guitarra eléctrica, tão versado na pirotecnia dos solos como ao manter uma melodia ou groove imprevisíveis, acrescentando-lhes um tempo, floreado ou break adicional a cada piscar de olhos; em como a banda reage creativamente aos devaneios sónicos deste, prolongando as canções por improvisos longos e trepidantes. Amber Baker arrasou na bateria, trazendo laivos hip hop à psicadélica e vibrante viagem, Jake Portrait trouxe a bola de espelhos nas quatro cordas do seu baixo. Uma “From The Sun” mais funky e imediata fez-nos render ao primeiro contacto, mas é na raspidez da voz de Ruban, embalada pelos balançares sensuais e luxuriantes de “The World Is Crowded”, que nos apercebemos da mestria de quem toca. “So Good At Being In Trouble” e “Swim and Sleep” são transformadas em triunfais hinos de estádio, a entrega da banda mais espevitada e dançante graças, em simultâneo, ao seu abundante talento e à enchente de público participativo e entusiasta. Nesta linha, Ruban larga a guitarra e entoa “Stage Or Screen”. É recebido nos braços do público qual Madonna ou Bruce Springsteen, sendo levado num crowdsurf que dura um par de minutos. “Ffunny Ffrends” é transformada e dá-se ênfase à melodia vocal, para gáudio da criançada. Seguidamente, McCrary surpreende a cada 5 segundos do seu improviso no teclado, irrompendo depois com os acordes da mui adorada “Multi-Love”, recebida unanimemente em histeria. Banda e público no mesmo compasso, trocando boas vibrações e aliciando o outro a dar sempre um bocado mais: “Can’t Keep Checking My Phone” faz-nos dançar até à última nota. Soberbo.
Foi realmente numa nota soberba que o dia se deu por terminado, ressoando ainda os balançares vertiginosos das batidas dos Orelha Negra nos nossos crânios. Remisturando sons incontornáveis do hip hop actual como “Otis”, “Bitch, Don’t Kill My Vibe”, “0 to 100” ou até mesmo “Hotline Bling”, mas também igualmente focados na improvisação levada por um motivo ou sample, o grupo de hip hop instrumental português mostrou-se imparável, deixando água na boca a qualquer rapper presente desejoso de rimar sobre algo excelente, fosse trap, boom bap, g-funk, jazz rap ou qualquer outro subgénero de sua eleição – a banda era excepcional em todos. Fez-se barulho e celebrou-se o ecletismo e bom gosto daqueles cinco senhores, simultaneamente DJ Shadow, Metal Fingers, Flying Lotus e The Avalanches cá de terras lusas. A descobrir e para amar.
*Fotos gentilmente cedidas por Hugo Lima, em actualização