Em “A Charlie Brown Christmas”, o nosso coração, muito encarnado, fica exposto ao efeito do tempo que, a cada dia que passa, nos obriga a crescer sempre mais um pouco.
O fenómeno que a série Peanuts provocou nos Estados Unidos, na década de 60, atingiu níveis de popularidade inéditos. Entre quadradinhos em folhas de banda-desenhada, a série conseguiu mesmo chegar a todos os cantos do mundo, sendo ainda hoje considerada um dos «comic strips» com mais sucesso no mundo. Com 17.897 «desenhos» publicados, presentes em 75 países e traduzidos para 21 línguas, Peanuts, nesse fenómeno de popularidade, acabou por chegar a Portugal, onde toda a gente também é capaz de reconhecer aquele rapazinho cabisbaixo que tinha no seu cão, Snoopy, a sua melhor companhia… Charlie Brown!
A série teve tanto sucesso no papel que, eventualmente, já a meio da década de 60, passou para a televisão, através de várias transmissões «especiais», nas quais as personagens da banda-desenhada passaram a ser autênticos bonecos animados. Todos os anos, na altura do Natal, as televisões norte-americanas regressam ao passado com a transmissão do especial de Natal de Peanuts, “A Charlie Brown Christmas”, originalmente estreado em 1965.
Charles Schulz, criador da série, contado com a ajuda do produtor Lee Mendelson, convidou o pianista Vince Guaraldi para compor as músicas que estariam incluídas num documentário, cujo objetivo era justamente documentar o sucesso da banda-desenhada na época. No entanto, esse documentário (“A Boy Named Charlie Brown”) acabou por nunca ser lançado, mas as composições dessas produção não podiam ficar esquecidas numa gaveta construída pelo tempo e pelo pó. Por isso, foram incluídas, pouco tempo depois, no episódio televisivo “A Charlie Brown Christmas”, sendo também lançadas autonomamente pela companhia discográfica Fantasy, em formato LP.
Todos os anos escuto esse álbum. Apesar de, ao longo da minha vida, nunca ter tido um contacto muito próximo com a série que vem sendo referida nesta revisitação musical, não tenho como não deixar escritas umas palavras sobre a música que dá vida às personagens da série, durante esta época festiva.
Vince Guaraldi, com a ajuda de Jerry Granelli, na bateria, e de Fred Marshall, no baixo, produziu um dos álbuns de Natal mais bonitos de sempre. É verdade que o jazz, por não ter propriamente (na grande maioria dos casos) uma figura vocal presente, acaba por conseguir retratar, com uma maior profundidade, os sentimentos nos quais as suas composições se baseiam.
Em “A Charlie Brown Christmas”, esse fenómeno ocorre num registo ainda mais intenso. Trata-se de um álbum forte, cheio de emoções quentes e que chega ao coração de toda a gente (… mesmo daqueles teimosos que dizem não gostar de jazz). Em “A Charlie Brown Christmas”, o nosso coração, muito encarnado, fica exposto ao efeito do tempo que, a cada dia que passa, nos obriga a crescer sempre mais um pouco. E, a cada dia que crescemos, ficamos cada vez mais distantes de nós próprios, que deixamos de existir porque crescemos, porque deixamos de ser crianças.
O Natal consegue ser sempre o dia mais feliz e infeliz do ano. Dessa antítese nasce uma melancolia da qual não nos conseguimos desprender durante estes dias. Esta é a época mais melancólica do ano. Por estes dias, sonhamos em acordar novamente crianças, mas, todas as manhãs, somos empurrados para uma realidade onde voltar atrás no tempo (e na vida) é apenas uma impossibilidade fria, um sonho… de menino? Guaraldi conseguiu prender as emoções que toda a gente experiencia durante a época natalícia em 14 faixas. Em todas elas, mas especialmente nos vocais da “Christmas Time Is Here”, reconhecemos o som de um instrumento musical muito próprio e especial: a melancolia.
É impossível regressar à nossa infância, sim. Lamentamos a passagem do tempo e o desaparecimento de uma felicidade que sentimos apenas quando eramos crianças. E não podemos fazer nada para voltar a viver esses momentos, que não voltam; apenas podemos recordá-los e senti-los através de tudo o que nos permite voltar a sentir. A música ajuda. A música ajuda muito. Esta obra de Guaraldi faz-nos voltar a sentir aquele que achamos ter perdido para sempre, mas que nunca chegamos verdadeiramente a perder. Iremos carregar para sempre dentro de nós tudo aquilo que já sentimos. A nossa infância nunca sairá de nós.