A discussão é tão velha como a história da música. Deve esta ser apreciada simplesmente pelo que é, pelo resultado final, pelo que nos faz sentir, ou deve ser analisada, dissecada, incorporada na própria história do autor no momento em que a produzia?
No Altamont, somos todos melómanos em vários graus, uma forma pomposa de dizer que somos loucos por música. E a verdade é que os loucos são assim, obsessivos, e ainda não encontrei um que não levasse mais longe o seu amor a um disco, a uma banda ou a uma música, procurando saber a história por trás dos sons. Consideraríamos de facto Exile on Main St. o melhor disco dos Stones se não conhecêssemos as peripécias excessivas e rocambolescas das gravações em França, no exílio fiscal na cave de Nellcôte? O White Album não deveria ser considerado o melhor disco dos Beatles, não fosse a história de que boa parte foi gravada individualmente, e não em conjunto? Ou é ou não verdade que parte do sucesso duradouro de Rumours, dos Fleetwood Mac, se prende com a mitologia da cocaína e das tensões entre a banda?
Falo disto porque o disco que nos traz aqui, Second Coming, dos Stone Roses, é um daqueles álbuns marcados pelo folclore à volta da sua feitura. E, neste caso, não beneficiou nada com isso.
Para contar bem a história, temos de começar cinco anos antes, com a edição do disco de estreia, homónimo, dos Stone Roses. Nesse momento, o disco foi um enorme sucesso de vendas e de crítica, com a banda a ser – como tantas outras – anunciada como o maior novo grupo do Reino Unido. Tudo parecia, então, ao alcance dos quatro rapazes de Manchester: Ian Brown na voz, John Squire na guitarra, Mani no baixo e Remi na bateria.
O problema foi o que se seguiu. Ao vivo, os Roses eram capazes do melhor e do pior, mas era sobretudo o pior que ficava na memória das pessoas. A banda, que se havia formado em 1983, atinge o sucesso já com bagagem e cansaço em cima, e as elevadas expectativas só tornaram tudo mais difícil. Abuso de drogas e, sobretudo, de álcool, retiravam consistência às actuações. O carismático Ian Brown, uma personagem maior que a vida, não tinha e não tem uma voz por aí além. Em estúdio, o seu timbre agradável e a forma quase monocórdica de cantar iam dando para o gasto, ajudando até à imagem cool da banda, graças a camadas de efeitos. A verdade – e quem viu os Stone Roses no Alive há uns anos nunca se esquecerá – é que Brown tende a desafinar para lá do aceitável. E isso, num vocalista, estraga qualquer concerto. O início dos anos 90 foi marcado por excessos, indulgência, conflitos internos e concertos que oscilavam entre o razoável e o miserável. Chegaram a tocar em Vilar de Mouros, concerto que ficou famoso por ser um dos últimos da primeira encarnação do conjunto e por ter terminado a meio, tal o caos vivido no palco.
Em 1991, os Roses recebem um convite da gigante Geffen, e decidem abandonar a independente Silvertone, que lançara o disco de estreia. Seguiu-se uma dura batalha nos tribunais, que a banda acabaria por ganhar mas que os impediu de lançar nova música durante um período crucial. A Geffen presenteia os rapazes com um adiantamento de um milhão de libras, e isto traz duas coisas: margem para excessos e tempo ilimitado de estúdio. Os anos de 1992 e 1993 foram passados de forma pouco consequente, a que não foi indiferente o facto de tanto Squire como Brown terem sido pais. Foi também o período em que morreram várias pessoas próximas do núcleo duro da banda. O resultado disso foi o crescimento da frustração dos músicos com o rumo dos Stone Roses, e algum esquecimento por parte do público, a embarcar em plena euforia Britpop.
Entretanto, a banda ia compondo novos temas e prometia lançar um disco ainda mais forte que o anterior, determinada a provar que tinha ainda muita vida dentro de si. É assim que chegamos ao habilmente titulado Second Coming, cujo processo de gravação foi tão caótico como a vida dentro da banda.
A Manchester natal foi abandonada, e as gravações foram feitas em vários estúdios no País de Gales, ao longo de inúmeras sessões muito espaçadas. A banda dispensou a ajuda de um produtor, e as inúmeras possibilidade abertas por tempo ilimitado de estúdio – juntamente com a megalomania de Squire – fizeram com que tenham ficado no anedotário inglês as célebres maratonas de gravação de Second Coming. A última versão conhecida fala de 347 dias de estúdio, a trabalhar 10 horas por dia, ao longo de dois anos.
Resultado? Quando o disco sai, é uma de duas coisas: para uns motivo de piada; para outros, apenas irrelevante, dado o hiato decorrido desde o amado disco de estreia. A recepção do público até foi boa. Boas vendas iniciais, tanto do álbum como de singles, mas que se foram diluindo no turbilhão da música britânica de então. O mundo era agora dos Blur, dos Suede, dos Pulp e dos Oasis, e já não queria saber dos Stone Roses. Curiosamente, os Roses foram uma das grandes influências de um jovem Noel Gallagher, e ecos do seu som podem ser claramente ouvidos nos dois primeiros discos dos Blur. A crítica, com dezenas de coqueluches frescas a quem apaparicar, destruiu este regresso dos Stone Roses. A banda que havia sido britpop antes da britpop, pegando no ‘swing baggy’ da Madchester mas elevando o jogo até um pop-rock muito acima dos seus contemporâneos, estava agora do lado errado da história.
E foi este legado, sobretudo crítico, que pesou até hoje sobre este Second Coming, unanimemente considerado “muito pior do que o primeiro”, naturalmente por gente que engoliu a historieta que lhe venderam e não se deu ao trabalho de ouvir este enorme e delicioso segundo capítulo.
Se o primeiro disco é uma pérola pop do princípio ao fim, o segundo dá vários passos em frente. A banda surge narcotizada, relaxada, e muito marcada por um John Squire em extraordinária forma. Se inicialmente a sua composição era muito inspirada pelo dedilhar subtil de Johnny Marr, dos Smiths, aqui temos Squire em versão guitar hero dos anos 70. Mostra aqui ser um dos melhores, se não o melhor, guitarrista britânico da sua geração, taco a taco com Bernard Butler, dos Suede. O disco assenta em alguns eixos fundamentais: na belíssima forma de uma das melhores secções rítmicas de sempre, os gémeos do groove, Reni e Mani (este último que viria a ser fundamental na carreira dos Primal Scream, por exemplo); no fraseado cool e bem coberto de Brown; e sobretudo, na guitarra desbragada e cheia de feeling de Squire, que eleva todo o disco até um patamar de excelência. Quem gosta de rock, particularmente rock de guitarras, devia estudar este disco todos os dias da sua vida.
O disco começa, de forma apropriadamente megalómana, com uma faixa de 11 minutos: “Breaking Into Heaven”. Mais de quatro minutos são passados com ritmos tribais, entrecortados pela guitarra lancinante de Squire, que depois se lança num groove que traz a dança de Madchester para o rock descontraído dos meninos crescidos. “Driving South” é um monstro rock, movido por um poderoso riff e pelos solos enleantes e cristalinos que são a imagem de marca de Squire. Segue-se a primeira balada do disco, “Ten Storey Love Song”, uma das músicas mais bonitas do rock britânico, com um daqueles refrões de encher um estádio. “Daybreak” é, basicamente, uma das melhores jams de sempre, num estilo ‘baggy’ todo ele feito de funk rock. “Your Star Will Shine” é um dos momentos acústicos, com ecos iniciais de Led Zeppelin e terminando numa ‘campfire song’ de altíssimo nível. “Straight To The Man” mostra, em todo o seu esplendor, os novos Roses: ritmo quase funk, cortesia de Reni e Mani, riffs blues e um ambiente descontraído e “ganzado”. De seguida temos o alien do disco: “Beggin You”, baseado num ritmo frenético de bateria e de um riff repetido e desconstruído de Squire. Hoje, soa a Kasabian em esteroides, e é talvez o tema mais dançável e mais diferente da discografia do grupo. “Tightrope” traz a calma de volta, com mais um belíssimo momento de descontração acústica, com a banda a cantar em coro, num registo quase hippie. “Good Times” é Stone Roses vintage, num tema de rock clássico movido por Squire. Segue-se “Tears”, que começa num tom acústico que roça perigosamente os Bon Jovi de “Dead or Alive”, para depois ser resgatado quando a canção arranca a sério, acabando por mostrar que os receios iniciais eram infundados, e que a banda continua a recuperar sempre o bom gosto na composição e no arranjo. “How Do You Sleep” é uma canção simples, e provavelmente das coisas mais parecidas com uma música pop feita pela banda. É também um dos temas que mais remete para a sonoridade do disco de estreia. O último tema “assumido” do disco é “Love Spreads”, e aqui temos toda a banda em magnífica forma, com os quatro elementos a trabalharem em conjunto para nos trazerem uma canção em formato jam, que vai crescendo, crescendo, até rebentar num clássico refrão automático de Brown, que quando acerta é insuperável. Há ainda um último tema, conhecido por “Foz”, que pouca gente que tem o cd alguma vez terá ouvido. E ainda bem, porque não passa de alguma cacofonia “a la Captain Beefheart”. Nunca ninguém a ouviu porque a versão cd tem 99 faixas: entre os temas a sério e a faixa escondida há 80 e tal faixas de quatro segundos cada. Qual o objectivo? Ninguém sabe, mas é uma óptima forma de impedir que o disco seja ouvido em modo ‘shuffle’.
Como já relatado, foi a reacção crítica que matou, para sempre, Second Coming, condenando-o a viver com o rótulo de disco maldito. Os groupies excitados da britpop não aceitavam que os inspiradores do movimento, de repente, surgissem com um disco a soar a madchester vs rock americano dos anos 70, longe da simplicidade sonora da pop que então fazia o Reino Unido ser falado em todo o mundo. Junte-se a isto o folclore da gravação do álbum, meia dúzia de concertos desastrosos, e o resto é história. Pouco tempo depois, começaram os verdadeiros problemas dentro da banda, levando à saída de vários membros. Stone Roses não é a mesma coisa sem qualquer um daqueles quatro elementos (a suprema heresia foi tentar continuar a banda sem John Squire). Depois o fim, até ao regresso há poucos anos, mas sem material novo.
Para o mundo, os Roses são um disco e a sua gigantesca sombra. Mas o tempo é bom conselheiro, e Second Coming envelheceu bem. Continua relevante, complexo, fluido, ambicioso, e um compêndio na arte de fazer canções. É altura de os fãs desta enorme banda deixarem de ansiar por nova música ao nível do álbum de estreia. Eles já o fizeram, de forma diferente, há 21 anos.
Vamos sempre a tempo de corrigir uma enorme injustiça feita a um monumento do rock construído em Inglaterra.