Mais desordeiros e lascivos do que os seus rivais de Liverpool, os Stones foram vendidos no mercado do rock como “o lado negro dos Beatles”. O efeito secundário foi, porém, desagradável: ficaram durante muito tempo acorrentados criativamente à banda de Lennon e McCartney. Os covers do rock and roll americano da primeira fase (Rolling Stones, Rolling Stones No. 2 e Out Of Our Heads), os originais pop de sabor britânico da segunda fase (Aftermath e Between the Buttons) e o psicadelismo da terceira fase (Their Satanic Majesties Request) foram sempre respostas tardias dos Stones a caminhos criativos encetados pelos Beatles (em Please, Please Me, Hard Day’s Night e Revolver, respectivamente).
Em ’68, os Stones emancipam-se por fim dos seus irmãos mais velhos. Graças à influência de Keith Richards – sempre mais nostálgico e avesso às modas do que o fútil Mick Jagger -, os Stones encontram uma voz original, reinventando como ninguém as raízes da música americana. Com efeito, na última tour em ‘66, os Stones tinham sido muito influenciados pela América profunda, especialmente a do Sul. Aproveitaram para comprar muitos oldies americanos mas só agora tinham tido tempo para se sentar tranquilamente em frente a um gira-discos. Quando isso aconteceu, a assimilação da “old way of do it” foi total. Os Stones renasciam.
A mais americana das bandas inglesas atinge assim o seu clímax criativo, fazendo os quatro melhores álbuns de toda a sua carreira: Beggars Banquet (’68), Let It Bleed (’69), Sticky Fingers (‘71) e Exile On the Main Str. (’72). Get Yer Ya-Ya’s Out (lançado em ’70) é o polaroid para a posteridade que capta os Stones em cima de um palco no momento do seu auge. O habitat natural dos Stones sempre foi o palco e não o estúdio de gravação. É ao vivo que a sua energia e irreverência se manifesta em todo o seu esplendor. Nesse sentido, talvez não seja exagero argumentar que Get Yer… constitui o melhor disco dos Stones. O público reconheceu a sua grandeza, elevando-o ao estatuto do primeiro disco ao vivo a chegar a número um no Reino Unido. Muitos argumentam que é mesmo o melhor registo ao vivo de sempre. Encontro poucos argumentos para os desmentir.
Estamos em ’69 e os Stones regressam à estrada depois de um interregno de três anos. Em ’66 a qualidade da música era irrelevante: o público gritava, histérico, do princípio ao fim (Brian Jones brincava com a situação, tocando muitas vezes a música do Poppey, e ninguém reparava!). Mas em apenas três anos o público amadurecera imenso: sentavam-se, tranquilamente, de ganza na mão, realmente interessados em ouvir a banda que tinham à frente.
A vontade de partir para os Estados Unidos em digressão tinha sido várias vezes adiada devido aos crescentes problemas pessoais e legais de Brian Jones. Brian nunca conseguira digerir o facto da dupla Jagger/Richards lhe ter roubado o protagonismo. A última machadada acontece quando Richards lhe açambarca a namorada. Está tão deprimido, bêbado e pedrado que mal consegue pegar numa guitarra. Além do mais, as suas sucessivas detenções por posse de drogas colocam barreiras legais à sua entrada nos Estados Unidos. A sua demissão em 8 de Junho (a antecâmara da sua morte ocorrida a 3 de Julho) acaba por resolver o problema da forma mais trágica. Para o lugar de Jones vem Mick Taylor, que pelas suas credenciais como guitarrista dos John Mayall and The Bluesbreakers tem o perfil perfeito para esta fase bluesy dos Stones. Tem apenas vinte anos, menos seis do que Jagger e Richards, mas toca guitarra que se desunha. Em 5 de Julho, Taylor estreia-se ao vivo como membro dos Stones, num concerto em Hyde Park de homenagem a Brian Jones. Os fantasmas não estão, porém, exorcizados. Jagger e Richards não comparecem sequer ao funeral do amigo que fundara os Rolling Stones.
A tour pelos Estados Unidos começa em 7 de Novembro de ’69 mas o material recolhido em Get Yer… provém sobretudo dos concertos acontecidos a 27 e 28 de Novembro em Nova Iorque, no Madison Square Garden (apenas “Love In Vain” foi gravada um dia antes num concerto em Baltimore). Para o disco são gravadas as canções acabadas de sair do forno, provenientes sobretudo do Beggars Banquet (de ’68) e do Let It Bleed (de ’69), bem como dos singles Jumpin Jack Flash e Honky Tonk Womem. Mick Taylor só tinha tido a oportunidade de participar na gravação deste single e de duas canções de Let It Bleed. Get Yer… foi assim a primeira vez que temos oportunidade de ouvir do princípio ao fim o brilho da sua guitarra.
Ouvimos no disco uma fã mais saudosista a implorar pelo “Paint It Black” mas nenhum dos êxitos antigos foi gravado neste disco (“Satisfaction”, “Under My Thumb” e “Let’s Spend the Night Together” são igualmente ignorados). Para quê cantar hits do passado se os Stones estavam na sua fase mais criativa? O contraste com os concertos de hoje – sempre nostálgicos de um passado tão glorioso como distante – não poderia ser maior. A única canção antiga dos Stones que foi repescada – a “Carol” do primeiro álbum – nunca fora um êxito. A razão de aqui estar, juntamente com a sua irmã “Little Queenie”, é de outra ordem: revisitar Chuck Berry é um statement de revivalismo, uma ode à crueza visceral dos pais do rock’n’roll. Muitos anos mais tarde, Keith confessaria: “Eles, os pioneiros, é que são os grandes. Eu não passo de um ladrão.”
Há, no entanto, uma diferença de tom entre os discos originais e este registo ao vivo: enquanto Beggars Banquet e Let It Bleed têm muitas canções acústicas (uma reacção dos Stones à ruidosa electrificação dos Cream e do Hendrix), Get Yer… exclui deliberadamente o material acústico, e até a dolente “Love In Vain” é mais eléctrica do que na versão original.
O concerto começa anunciando “a melhor banda de rock’n’roll do mundo”. Por mais pretensioso que o anúncio seja, não deixa de ter a sua pertinência: com os Beatles fora dos palcos e em acelerada desagregação, os Stones não tinham, de facto, rivais à sua altura. A importância histórica da tour de ’69 foi precisamente essa: provar ao mundo que os Stones governavam sozinhos. O teste foi aprovado com distinção. Não havia acontecimento maior no rock do que um concerto dos Stones. Jimi Hendrix, Janis Joplin: toda a gente estava lá. E não obstante os preços exorbitantes dos bilhetes, estes eram rapidamente esgotados, sendo os Stones muitas vezes impelidos a fazerem dois concertos seguidos na mesma noite.
A canção de abertura é “Jumpin Jack Flash”, fazendo-se assim justiça ao single em que os Stones deixaram de brincar ao flower power, entrando em ruptura com a sofisticação psicadélica de Their Satanic Majesties Request. O riff explosivo de Keith Richards marca o tom sujo e cru que atravessa todo o álbum.
Na politicamente incorrecta “Stray Cat Blues”, Jagger decide esticar ainda mais o grau de polémica da canção original. Se na versão de estúdio a groupie-cujos-avanços-sexuais-não-se-recusam tem quinze anos (“I can see that you’re fifteen years old/No, I don’t want your I. D.”), na versão ao vivo a idade desce para uns chocantes treze anos. Se a deixa tivesse sido escrita hoje, era bem provável que Jagger fosse preso por incitação ao abuso sexual de menores.
“Love In Vain” é a pausa kit-kat do disco, um blues lento e melancólico escrito pelo mítico Robert Johnson em ‘37. Tal como Hendrix antes fizera com a “All Along the Watchtower” de Dylan, são os Stones, em Get Yer…, que dão ao mundo a versão definitiva de “Love In Vain”. É difícil não nos comovermos quando ouvimos Jagger cantar as palavras cinematográficas de Johnson: “When the train came in to the station I looked her in the eye, oh I felt so sad and lonesome that I could not help but crie”…
O ponto mais alto do disco é “Midnight Rambler”, nove minutos de blues visceral à Howlin’ Wolf nos quais todas as texturas sonoras (até a harmónica e a voz) são utilizadas como instrumentos de ritmo. É exemplar a forma como os Stones brincam com o tempo, acelerando e abrandando os compassos a seu belo prazer. A canção é inspirada no “estrangulador de Boston”: serial-killer que violara e estrangulara treze mulheres entre ‘62 e ’64. Além do gosto irreprimível pela provocação, poderemos entender “Midnight Rambler” como uma metáfora do predomínio da violência sobre a paz e o amor.
A mefistofélica “Sympathy For The Devil” despe a roupagem afro-brasileira que usara em estúdio, mostrando-se em todo o seu esplendor eléctrico. O solo de Keith Richards, económico e inventivo, é uma chapada na cara ao virtuosismo enfadonho de tantos guitarristas. O seu colega Mick Taylor não enfia o carapuço: o seu contra-solo fluido e agressivo expande com mestria as notas de Richards. Get Yer… vive muito desta tensão permanente entre dois guitarristas com estilos opostos.
A sexista “Live With Me” já era eléctrica em Let It Bleed mas a sua agressividade esbarrara antes no ambiente contido do estúdio de gravação. A versão ao vivo de Get Yer…, na sua espontaneidade e violência, é muito mais interessante. A influência de Chuck Berry é notória.
Segue-se o single “Honky Tonk Women”, um misto de blues com country que nos dá uma vontade irreprimível de dançar num bar de putas na América profunda. Com as suas letras sexistas e sexuais, os Stones continuam a irritar de uma só assentada a direita puritana e a esquerda feminista.
A menos política de todas as bandas encerra o concerto com a mais política das suas canções: “Street Fighting Man”. A canção espelha a turbulência social que se vivia então nos Estados Unidos. Acontecimentos como a guerra do Vietname e o assassinato de Luther King desencadeiam manifestações e motins um pouco por todo o lado. Ao engajamento político dos hippies, os Stones respondem com o mais cínico individualismo: “But what can a poor boy do/except to sing for a rock ‘n’ roll band/’Cause in sleepy London town/There’s just no place for a street fighting man”.
Na sua provocação ao idealismo hippie, Get Yer Ya- Ya’s Out foi a resposta dos Stones a Woodstock (acontecido apenas quatro meses antes). Mal sabiam eles que apenas uma semana depois, no Altamont Free Festival, a parada iria subir tanto. Por maior que fosse o cinismo dos Stones em Get Yer…, nada os havia preparado para o que aconteceria a seguir.