Denso, belo, cativante, mas muito freak, também. A deliciosa paranóia extravagante de Fear of Music é um vírus bom, daqueles que ninguém se importará de apanhar.
Fear of Music é uma obra-prima que anuncia outra ainda maior. A frase é tão assertiva quanto verdadeira, pelo menos para nós. No entanto, a ideia não é discutir se o álbum de 1979 é equivalente, em termos de qualidade e inovação, ao do ano seguinte, o extraordinário Remain In Light. A ideia é, isso sim, começar por referir que Fear of Music é um álbum incontornável e que perdura, influenciando artistas, desde que deu à luz, a 3 de agosto do já mencionado ano. Quanto a isto, estamos conversados. Assim sendo, vamos lá alargar um pouco mais a conversa…
Fear of Music é o primeiro de dois álbuns em que a escolha para a produção recaiu, e bem, em Brian Eno. Esse fator não é despiciendo, quando tentamos analisar a obra da banda norte americana. Há um antes e um depois de Brian Eno na discografia dos Talking Heads, sem que essa fronteira, digamos assim, queria dizer que essas instâncias de tempo (o pré e o pós) tenham produzido trabalhos sem interesse. Isso, a assumir-se como bom, seria um disparate do tamanho do mundo. Mas, de facto, Brian Eno trouxe aos Talking Heads algumas coisas bem espelhadas em Fear of Music, assim como no álbum seguinte: ritmos africanos à maneira de Fela Kuti, embora adornados pela escola arty que alguns dos membros da banda possuíam. Mas trouxe mais ainda, como alguma vontade de experimentar e improvisar, afastando a banda do som mais convencionalmente punk e rock que se fazia na Bowery de Nova Iorque, na segunda metade dos anos 70 do século passado.
Quanto às canções, há hinos memoráveis, desde logo a pseudo-balada “Heaven”, linda e intensa como o céu mais estrelado numa noite muito escura. Esse será, seguramente, o tema mais conhecido de Fear of Music. É curioso referir que “Heaven” não foi single do álbum, que teve, diga-se de passagem, três. Vamos a eles: “Life During Wartime”, “I Zimbra” (embora apenas no país do sol nascente) e “Cities”, todas excelentes canções, duas delas com versos cantáveis e memoráveis (“Find a city / Find myself a city to live in”) ou (“This ain’t no party, this ain’t no disco, / This ain’t no fooling around / This ain’t the Mudd Club, or C.B.G.B. / I ain’t not time for that now”) estes últimos com deliciosas referências a dois locais icónicos da música e da contracultura da cidade que viu nascer tantas e boas bandas daquele tempo. Quanto a “I Zimbra”, ainda hoje estamos por conhecer quem os conheça de cor, para além de David Byrne, como é óbvio. No entanto, e tendo como exceção a já mencionada “Heaven” (apetece ouvi-la em repeat indefinidamente), e ainda a maravilhosa “Air” – há nela alguns sons que fazem tanto lembrar instantes de “Waltzinblack”, tema de abertura de The Gospel According to the Meninblack (1981), dos The Stranglers, mas isso pode ser apenas impressão nossa – a canção que mais gostamos do disco é “Mind”, com os seus ritmos pausados, que dançam connosco, avançando e voltando atrás, perfeitos no equilíbrio e no balanço que proporcionam. É uma canção que fala, parece-nos, sobre alguma incapacidade em comunicar, em mudar pessoas e comportamentos, mesmo com ajuda de drogas, do tempo ou da ciência. E, por falar em produtos ilícitos, outra das nossas preferidas é “Drugs”, faixa que fecha o álbum de forma maravilhosa. A estranheza da canção é cativante, sobretudo se a ouvirmos algumas vezes seguidas. Talvez represente o consumo de drogas, como se isso estivesse a acontecer naquele preciso momento, e dá ideia de não ter sido totalmente boa, a experiência. Entre todas as 11 faixas do álbum, é provável que seja nessa que mais se nota o dedo de Brian Eno. Ouvem-se sinos, sapos a coaxar (ou qualquer coisa de parecido com isso), alguma eletrónica, mas a sua principal virtude é encerrar, como dissemos, Fear of Music no pico da sua deliciosa e elegante estranheza e paranóia. Teria cabido perfeitamente em The Idiot, de Iggy Pop, pensamos nós, saído dois anos antes deste terceiro longa duração dos Talking Heads.
Quanto mais se ouve Fear of Music, mais se gosta dele. É tão bom que se torna quase pecado não voltar a ele algumas vezes por ano. E sim, é um disco para a vida, sobretudo se tivermos pelos Talking Heads o apreço que eles tanto merecem. Não há que ter medo deste som e desta música.