Na semana em que Cornell partiu, recordamos o primeiro grande disco dos Soundgarden.
O tempo da pop não é uma variável constante. Ora flui vagaroso, nada acontecendo durante eternidades; ora dá um salto abrupto, mudando tudo à sua passagem. 1991 é um desses momentos de aceleração: o ano em que explode o grunge, com o inesperado sucesso de Nevermind varrendo tudo à sua frente, matando o hair metal, adormecendo a pop açucarada, trocando o escapismo e o artifício pela angústia e a autenticidade, fazendo o alternativo ascender ao mainstream. Nevermind pode ter sido a faísca – e o farol – mas de maneira nenhuma fez a revolução sozinho. Basta recordarmos alguns dos outros álbuns que 1991 ofereceu ao mundo: Ten dos Pearl Jam, Gish dos Smashing Pumpkins, e, claro, o disco que hoje nos trouxe aqui.
Mas antes de escalpelizarmos o espécimene em questão, um pouco de enquadramento histórico não fará mal a ninguém, não vá alguém julgar que os Soundgarden eram uns quaisquer novatos na peugada dos Nirvana. Não, minha gente: em 1984, ainda Cobain era um perfeito desconhecido, já os Soundgarden existiam, integrando a primeira vaga do grunge (juntamente com os Melvins, os Green River e os Malfunkshun).
Em 1988, a banda de Cornell edita o seu primeiro longa-duração: Ultramega OK. A sua sonoridade era então muito diferente, uma mistura estranha de hardcore à Black Flag com pós-punk à Swans, com o que isso implica de perversidade e experimentalismo.
O segundo álbum aparece em 1989, chama-se Louder Than Love e representa um marco histórico: foi o primeiro disco grunge a ser assinado por uma major. O seu som é um metal lento e arrastado, percorrendo territórios próximos do doom e do stoner rock, mas sem a inspiração com que mais tarde uns Sleep ou uns Kyuss emprestariam a ambos os géneros.
No mesmo ano, dá-se uma mudança importante: o baixista Hiro Yamamoto sai da banda, sendo substituído por Ben Shepherd. O álbum seguinte, de ’91, já conta com a sua linha de baixo distorcida, sempre muito saliente na mistura, ocupando o âmago das canções, um coração bombeando sangue rock’n’roll para todo o organismo. Tenha sido ou não Shepherd a fazer a diferença, uma coisa é certa: de Louder than Love para Badmotorfinger, acontece um salto quântico a nível da qualidade das canções e da inventividade dos riffs. O primeiro grande álbum dos Soundgarden acabara de ser feito.
A banda reinventa-se, deitando fora a rudeza hardcore e o negrume pós-punk, e pondo no seu lugar um revivalismo dos primórdios do heavy metal. Nessa paixão retro pelos anos 70, os Soundgarden cumprem um dos aspectos centrais da agenda grunge: mandar os anos oitenta à merda. Os riffs de guitarra de Kim Thayil devem tudo a Jimmy Page e a Tony Iommi, mas aparecem com uma desenvoltura e desfaçatez tais que nos soam a modernidade. Pura ilusão. O grunge pode ter virado a indústria musical de pernas para o ar, mas nunca foi uma revolução estética propriamente dita (pelo menos, não no sentido em que o foram o rockabilly, o psicadelismo, o punk ou o hip-hop). Sempre houve no grunge uma sensibilidade retro que o exclui à partida desse estatuto de inovador estético. E não nos referimos apenas ao neo-blues rock dos Soundgarden (roubando um pouco aos Led Zeppelin e tudo aos Black Sabbath). Também os Pearl Jam reciclam o classic rock, sendo incobrável a sua dívida ao mestre Neil Young; também os Nirvana são puro punk pop, o casamento perfeito entre os Beatles e Ramones. Mesmo a sua dinâmica versos suaves/ refrões explosivos – que se tornou o grande lugar-comum do grunge, imitado até à náusea por centenas de bandas menores – foi descaradamente roubado aos Pixies…
Mas regressemos a Badmotorfinger. Os portentosos riffs de Kim Thayil estão no centro de tudo, relegando a melodia para segundo plano; o que traz uma vantagem: quando por fim a melodia assoma – ali, numa ponte; acolá, num refrão – ela surge maravilhosamente colorida, como uma mulher que tira os óculos, revelando, pela primeira vez, o esplendor dos seus olhos.
A textura das guitarras é espessa e saborosa, como uma fotografia a preto-e-branco cheia de grão- Sebastião Salgado para os ouvidos. Muito se tem questionado o grunge enquanto categoria musical homogénea e os cínicos terão a sua quota-parte de razão quando enfatizam o papel dos media na construção algo arbitrária deste rótulo. Contudo, talvez uma característica salve a honra do convento. Falamos, justamente, desta textura granulosa das guitarras, presente em tantos discos grunge.
Não nos lembramos de Chris Cornell chegar a notas tão agudas nos dois primeiros discos. É como se Cornell descobrisse pela primeira vez a inacreditável amplitude da sua voz, e fizesse questão de testar os seus limites. A inspiração em Robert Plant é evidente, mas o virtuosismo vocal de Chris transcende o do próprio mestre. Por vezes, o seu quase balir pode tornar-se cansativo; mas os registos sempre graves da guitarra-ritmo servem de contra-peso, como quem saboreia um gelado com dois sabores opostos mas complementares.
Há uma característica em Badmotorfinger que muito me intriga e fascina: a sua falsa simplicidade. As canções entram-nos bem no ouvido, batemos o pé, ficamos com vontade de partir coisas, como sucede em todo o bom rock’n’roll, mas depois pedimos a alguém que perceba de solfejo para esmiuçar a música, e dizem-nos que os compassos marcados por Matt Cameron são complexos e invulgares, raramente utilizados na música pop (com a excepção do rock progressivo), e com mudanças súbitas de compasso dentro do mesmo tema. Algo de parecido sucede, aliás, com as guitarras, com muitos dos seus temas fugindo à afinação-padrão. Esta falsa simplicidade faz-me lembrar as canções da bossanova, cujas doces melodias entram logo no ouvido, ao mesmo tempo que os acordes que as sustentam são complicadíssimos. Deus fez assim a beleza do mundo: simples para quem o contempla, infinitamente complexos nos seus mecanismos.
Não sei se Badmotorfinger será ou não o melhor álbum dos Soundgarden. Disputará certamente o troféu com o tomo seguinte – o épico Superunknown. Onde o primeiro é mais coeso e explosivo, o segundo será mais melódico e inventivo, sendo francamente difícil chegar a um veredicto final. Onde já não tenho dúvidas é sobre qual dos dois tem o privilégio de albergar o melhor tema da banda. Por muito respeito que tenha pela cativante “Black Hole Sun”, a grande obra-prima da banda será sempre a atormentada “Jesus Christ Pose”, quarta faixa de Badmotorfinger. Curiosamente, é um tema que foge à regra, nada tendo a ver com a matriz Led Zeppelin/ Black Sabbath que domina o álbum (há mais excepções: “Holy Water” é puro Hendrix; “Face Pollution” é puro punk). As coordenadas são outras, mais próximas do thrash, mas temperadas com psicadelismo. Para quem nunca ouviu o tema, mas conheça bem os Beatles, que tente imaginar como a “Tomorrow Never Knows” soaria se tivesse sido escrita pelos Slayer…
Escrevemos estas linhas na semana triste em que Chris Cornell decidiu apartar-se de nós. Se ao seu nome somarmos os de Andrew Wood, Cobain, Layne Staley e Scott Weiland, um padrão inquietante torna-se cada vez mais evidente: a maior parte das figuras mais carismáticos associados ao grunge morreram cedo de mais, por overdose ou suicídio. Por muito que a indústria musical dos anos 90 tenha prosperado vendendo urbano-depressão ao quilo, tanta morte não engana: a angústia que, mais do que a própria música, definiu o grunge enquanto género nunca foi uma pose para os seus intervenientes, mas sim a mais trágica das verdades.
Pergunto então a ti, ó minha geração, em jeito de provocação: tu, que te fizeste gente neste caldo, e que te orgulhas disso como um pavão, mas que estás vivo e feliz a degustar a angústia alheia ao jantar, que fazes tu aí, com as mãos manchadas de sangue?