Com Samuel Úria nunca sabemos o que vamos encontrar. Daí que não nos tenha surpreendido que, na apresentação do seu novo disco, Carga de Ombro (essa “que é legal”, também se dita com sotaque brasileiro, arriscamos), no Teatro São Luiz, nos tenha surgido em palco com uma carrada de músicos atrás: só nos coros estavam oito e só dos Pontos Negros, banda entretanto extinta, estavam os seus quatro ex-membros: Jónatas Pires, Silas Ferreira, David Pires e Filipe Sousa, aos quais se juntava, por exemplo, Tiago Ramos. Uma espécie de Samuel Úria Ensemble — ou Samuel Úria Big Band —, portanto.
Esse lado de surpresa traz-nos sempre em concerto. É habitual vê-lo dar novas roupagens às suas canções, mudar os arranjos, mudar mesmo a letra, em certos casos. Fê-lo esta sexta-feira também, ao mesmo tempo que confirmou o que já sabíamos: Samuel Úria agiganta-se em palco, talvez como poucos músicos portugueses, tanto nos momentos mais expansivos e mais rock (“Depressão”, do novo disco) como em interpretações mais contidas, de canções como a delicadíssima “Barbarella e Barba Rala”, “Lamentação” (com que fechou o encore), “Essa voz” ou as novíssimas “Vem por mim” (que passa de expressão de confiança — estilo Vem por mim que eu sei do que estou a falar — a fragilidade confessada — “Vem por mim / que eu sou tão mau / a ir”) e “Graça comum”, formidável canção que está entre as melhores do seu novo álbum, e que inclui versos fabulosos como: “Quero ter queixo caído / a ganhar o céu / e dedo para pôr onde dói. Estar solto para ser / só mais um, / o indulto da graça comum”.
No novo disco, há canções que estão muitos furos acima das restantes, o que, pela primeira amostra, se transpõe em palco. É o caso da já referida “Graça Comum”, de “Dou-me corda” (a canção com que abriu o concerto e um tema com uma aura quase maldita — “Estou reservado para o lado que no fim se ri / mas nunca fico no meu canto sem sobrar para ti”, atirava-nos, de forma algo profética e desafiadora, que a sua neurótica coreografia, parecida com a do teledisco, acentuava) e de “É preciso que eu me diminua”. Não é o caso de outras, que, pelo menos por agora, não parecem tão inspiradas, como “Repressão” e “Aeromoço” (rimas com “ão” raramente são boa ideia) ou ainda “Palavra-Impasse” e “Tapete”. A segunda destas quatro canções (“Aeromoço”) é não apenas dedicada ao músico português Bruno Morgado como se inspira no seu reportório:
“Chegará o dia em que o bom português não o será por gostar de bacalhau, mas por conhecer e ouvir Bruno Morgado.”
Houve cinco grandes momentos no concerto: um cover de Prince (já lá vamos); a belíssima “Barbarella e barba rala”, canção tão boa que ouvi-la é sempre um momento mágico; “Lenço Enxuto”, reconhecida e ovacionada logo aos primeiros acordes (e bem merece a boa fama); “Carga de Ombro”, faixa que dá nome ao disco, e “Ei-lo” (de que, tal como o cover do Prince, falaremos mais adiante).
Se “Carga de Ombro” foi um deles, tal deve-se sobretudo à circunstância. É que esta já tinha sido tocada quando, no final do encore, Samuel Úria lhe foi pegar novamente, já com o encore terminado. Serviu para a despedida e para a sua saída de cena, feita a percorrer a plateia de guitarra na mão, sem microfone, cantando o tema até sair de vez pela porta de entrada dos espectadores (com o público a acompanhá-lo na caminhada, tal como os músicos que com ele tocaram e cantaram, que fizeram coro consigo). A (igualmente) nova “Ei-lo”, por sua vez, seria sempre um grande momento. É uma canção de agradecimento à “hora de estar vivo” (Jorge de Sena, vão ler) e a Jesus — “Eu já lá estava / para te negar / porque negaste / tu próprio a missão de te defenderes / eu sei bem / tu eras capaz”, canta-nos primeiro, para atirar depois, já com coro gospel à mistura, “Mas como imitar / alguém que se calou / e que lição nos dás / por não responderes”. Se o seria sempre, foi-o ainda mais no concerto, em grande parte devido à portentosa voz de Selma Uamusse, que se juntou a Samuel Úria em palco (depois de ter cantado na versão estúdio do tema), que ofuscou tudo o que a envolvia.
Houve também uma espécie de medley, que começou com homenagem a Prince (ver Samuel Úria cantar em inglês, ainda por cima a “Kiss”, fica para quem lá esteve!) e foi desaguar a uma curiosa interpretação de “Teimoso”. E essa magnífica canção que é “Não arrastes o meu caixão”, onde Jónatas Pires pôde mostrar que, sim senhor, os Pontos Negros podem-se ter reformado mas ele ainda sabe solar.
A sensação que o concerto de apresentação do novo disco deu é conforme (e confirma) o próprio álbum: duas ou três canções absolutamente magistrais, que rivalizam com as melhores do seu repertório; algumas boas, outras menos fortes e três ou quatro francamente abaixo do nível a que Samuel Úria nos habituou, em discos anteriores.
Mas há outra sensação de que é impossível escapar: a de que Samuel Úria não é apenas um cançonetista excepcional, um dos músicos que mais criativamente usa a língua para fazer canções (e não estou a pensar apenas na língua portuguesa e no panorama nacional; o seu talento para a escrita de canções é verdadeiramente invulgar à escala global) e que mais dotado e competente é em termos técnicos. É também um dos músicos portugueses que melhor transpõe o seu trabalho para o palco, que mais se agiganta ao vivo e que mais concertos memoráveis nos oferece. Cantautores destes, meus senhores (e minhas senhoras, só para fazer pirraça do Esteves Cardoso), não nascem por aí ao pontapé. Pelo que é bom que aproveitemos o facto de sermos contemporâneos de Samuel Úria, nome artístico de Samuel Úria.
(Fotos: Duarte Pinto Coelho)