A centrifugação e sedimentação de toda a espécie de emoções aconteceu no palco do Coliseu dos Recreios, não fosse Salvador Sobral um alquimista de espírito.
A entrada das cobaias na sala fez-se ao som de batidas cardíacas acompanhadas de percussão. Não muito fora de horas porque a química quer-se certa, ouve-se a voz de Salvador a entoar a primeira música deste tão recente Paris, Lisboa: “180,181 (catarse).”
O pano continuava fechado e aguardava-se um repentino aparecer da banda, mas todos sabemos dos volte-faces destas situações, e Salvador estava a entoar aquela catarse no camarote presidencial.
Numa encenação teatral, reaparece no corredor central da plateia, seguido por um único holofote, enquanto pedia para arrancarem os fios e apagarem as máquinas, corredor acima corredor abaixo. As luzes apagam-se e, numa movimentação meio-ninja, desaparece. O pano sobe, e revela-se o cenário intimista que não espanta. Um piano, contrabaixo, bateria e microfone, bem juntinhos no combate ao frio da alma. Entram prontamente os elementos da banda, respetivamente com os instrumentos em cima: Júlio Resende, André Rosinha, Bruno Pedroso e Salvador Sobral.
O protagonista da noite circulava em torno do piano admitindo para toda a sala ouvir: “os lábios secos dos nervos, é uma coisa que não se percebe”.
“Change” foi o tema escolhido para começar a noite, e fez recuar até à Fábrica do Braço de Prata há três anos, a ver um Salvador na sala Nietzsche, despedido de todos os quês que não interessam. Que curiosamente é o mesmo Salvador que se passeia pelo palco em passo meio mick jaggeriano.
Seguia-se “Cerca del Mar”, música do novo álbum, que só comprovou que Salvador tem meia orquestra a residir dentro dele e dois ou três adamastores, na aceção de figuração grandiosa e comovente, as forças da natureza.
“Queria fingir que é só mais uma noite, mas não, é uma noite importante, há algumas horas que estou bastante seco” – foi o primeiro quebra-gelo, sacando uma sempre pronta gargalhada ao público. E continuou: “Vamos tocar uma canção que é de um poema de um gajo, o Fernando Pessoa, que o Júlio musicou”, e assim começou “Presságio”, com uma delicada introdução ao piano.
O incentivo para o público cantar em comunhão é impreterível, e os súbditos, ainda que reticentes, já sabem bem demais o que a casa gasta.
Muitas foram as vezes que Salvador se distanciou do centro do palco para ver a música a acontecer em todas as perspetivas que o palco lhe permite. André Rosinha presenteia (e que presente) a audiência com um faustoso solo de contrabaixo, e dessa forma introduzia “Ela Disse-me Assim”. Mais um regresso àquele recanto da fábrica, mas com um upgrade de lotação da sala. Manifestava-se o primeiro momento acappella num coliseu que não se ouvia senão para provar que estamos em período de constipação sazonal.
“Tal é o nervo que não apresentei a malta, sabem…com o nervo a diva vem ao de cima.” – humoristicamente a la Salvador. Júlio e Bruno saem, e fica só André no contrabaixo, e o vocalista lisboeta aproveitou para nos dizer que o que se seguia era resultado de um concerto que viu de Sílvia Pérez Cruz, em que esta tinha um conjunto de instrumentos de cordas, e Salvador confessa que ficou fascinado, pelo que se sentiu motivado em criar um momento musical semelhante. Entram três violinistas e uma violoncelista em palco.
A primeira música que tocam juntos é “Grandes Ilusiones”, que demonstrou funcionar ainda melhor ao vivo e, a nosso ver, podia perfeitamente fazer parte da banda sonora de um filme da Disney sobre uma princesa que está apaixonada por um singelo plebeu que corre descalço na calçada.
Não faltaram desabafos: “Paris Tokyo II, é sobre mim e a minha esposa. E a minha irmã é como se fosse uma Telepizza, e eu quis saber como é que ela escrevia sobre esta relação, então liguei-lhe e disse-lhe o que precisava, contei-lhe sobre a minha relação e sobre as saudades, e ela disse: ok, 50 minutos e está aí. Escusado será dizer que a dela está mais bonita que a minha. E foi assim que ela escreveu esta “Estrada Dividida”, e foi com esta história que tocaram uma bonita canção que só podia ter saído das mãos de Luísa Sobral.
Prontamente vinha “La Souffleuse”, outro tema do novo álbum do artista, e podíamos tentar descrever a magia que esta música ganha quando interpretada ao vivo com cordas, mas sairia o tiro pela culatra, portanto, será mais simples imaginarem.
Num começo meio zoológico, com imitações primatas, canta “Paris, Tokyo II”, e não fosse uma música lindíssima, tudo o que ficaria na memória seria o facto de Bruno Pedroso ter fragmentado aquele coliseu, e que fragmentação de percussão que se deu.
“Benjamin” foi explicado em inglês, e é o hino deste Paris, Lisboa que nos diz que no corpo e na alma está o coração. Salvador fez do público o seu instrumento musical, e cantou-se num sobrepor bonito de vozes, terminando o tema com o característico trompete vocal.
Os próximos minutos de concerto foram os que motivaram a primeira ovação de pé. “Vou chamar a voz que mais admiro neste país e que já está habituada a estas andanças” – era “Mano A Mano” que se seguia com António Zambujo a entrar em palco. Mal este tinha chilreado e ouviu-se alguém por entre dentes na plateia dizer: “caraças” – e não é que foi bem-dito?
A banda ausenta-se no fim deste tema, e sozinhos sentam-se e entoam a “Só Um Beijo” que Luísa Sobral interpreta no álbum Rosa com o irmão. Esta participação terminou com uma sala justificadamente de pé e uma quanta água salgada nos olhos (e, esperamos, nos de outros tantos).
Voltam os três elementos da banda, e tocam “Playing With The Wind”, que ainda permitiu a Salvador rappar ao microfone dentro do piano. O fim do concerto ficava mais próximo, e Salvador decidiu dedicar a próxima canção a dois doutores que, segundo ele “ajudam um gajo a estar aqui!”.
E antes de começar a tocar “Ay Amor”, aproveitou ainda para fazer um momento de não-marketing, ao lembrar que “há discos lá fora, mas não comprem o disco, porque com o dinheiro que vocês já gastaram para estar aqui, podem ir descansados para casa”. Cada um sabe de si, é certo, mas todos os presentes na sala acompanharam o desgosto e angústia deste bolero puxado das entranhas, que permitiu à voz da banda e ao seu dono, vir bem para o centro da plateia assistir a um bocadinho do concerto, e de lá continuou a cantar, sem necessitar de amplificações porque a alma está suficientemente audível.
Saíam então de palco e os roadies denunciam um encore. “Era Amar Pelos Dois” que os trazia de volta. Mas não era só mais uma interpretação, neste concerto foi a primeira vez que este tema foi interpretado ao vivo com o arranjo original.
Para além do arranjo pelo qual já todos nos apaixonámos, o espanto estava numa plateia que se manteve surpreendentemente em silêncio a ouvir. Resultado? Um Salvador visivelmente emocionado. Um Coliseu que estava no momento, não-Eurovisivo, totalmente lacrimejante, um tanto quanto de tremer tudo o que é nosso.
“Eu juro que não falta muito tempo. Vamos tocar uma coisa nova, não filmem pá, ouçam com a alma” – mas foi um apelo pouco necessário, pois quem lá estava já levou a lição estudada de casa, e poucos foram os que elevaram aparelhos eletrónicos durante aquela hora e meia. E se não é para gravar, não é para contar, nem escrever, fica a sete chaves, e ignoramos que o objetivo deste texto é, precisamente, contar o que lá se passou.
Na música que antecede o fechar do pano, Salvador chama o amigo venezuelano Leo Aldrey e vão tocar, como sempre tocaram em Barcelona (onde estudaram) para o meio do público, onde todos se levantam, e fazem uma roda em torno dos dois. O mote desta interpretação foi “para que volte a haver uma democracia justa na Venezuela”, e armou-se uma pândega no Coliseu para ouvir “Anda Estragar-me os Planos”.
A noite terminava assim, e não cremos que alguém se tivesse sentido incomodado por não haver fogo de artifício. Afinal de contas, não é isso a música.