O Capote Fest já é tanto de Évora como as migas e o bom vinho tinto. À quarta-edição, apostou-se na diversidade do cardápio, um palpite que se revelou certeiro.
Soube bem ir picando rock, hip-hop ou acid jazz, ainda para mais com uma forte presença feminina. Confirmámos as nossas suspeitas de sempre: a boa música não tem género nem sexo. Outro fio condutor unia as pontas soltas: tudo bandas portuguesas, muitas delas cantando em português. Essa é uma das razões de ser do Capote Fest: lutar contra o provincianismo do que só o que é lá de fora é que é bom.
Quinta-Feira, 2 de Maio. Coube aos ribatejanos Mulheres a honra de abrir o festival, ainda no aconchego da histórica Sociedade Harmonia Eborense. Chamam-se deste modo só para enganar pois na verdade são só homens, e bem encharcados em gasolina e testosterona. Nice boys don’t play rock’n’roll…
Sexta-Feira, 3 de Maio. Subimos para a SOIR, ao Pátio do Salema, onde a festa assentou arraiais. A noite começou sofisticada e cosmopolita com o acid jazz dos Bananana, que dizem ser de Évora mas são na verdade do mundo. Sendo um colectivo instrumental havia contudo uma quase-voz, na pessoa de uma lânguida trompete. O groove era de tal ordem que alguns mortos, soube-se mais tarde, levantaram-se da campa nos Remédios e começaram a dançar.
Seguiram-se os lisboetas Môrus, que são só dois mas valem por muitos mais. Uma bateria tribal e uma guitarra hipnótica é tudo o que precisam para a sua original proposta, onde música popular portuguesa à Gaiteiros de Lisboa é enxertada com o mais desbragado experimentalismo pós-punk. Não era um prato fácil para digerir em contexto de festival mas no fim sentimo-nos fortalecidos com o óleo de fígado de bacalhau, com os nossos horizontes estéticos um bocadinho mais amplos.
Vieram também de Lisboa os Ciclo Preparatório, seduzindo-nos com o seu pop rock delicado à Coldplay. Os bonitos coros femininos acentuam ainda mais a doçura da sua estética. Os mais puristas do rock’n’roll sujo e rebelde talvez franzam o sobrolho mas nós gostámos da forma descomplexada com que assumem a sua condição de meninos bem, com camisas de marca bem engomadas e ténis le cock sportif brancos a condizer. É a escola de Os Golpes e Os Capitães da Areia. Se pensarmos bem, quando a norma no rock é feita de bad boys cabeludos e desgrenhados, não há atitude mais punk do que a betice pride, envergando os berloques dos sapatos de vela como orgulhosos estandartes.
A noite acabou com as roqueiras Anarchicks. E eram tantas mulheres em palco, e tão giras, que de repente só se viam homens lá à frente, babosos e felizes. As nossas riot grrrls favoritas bem tentam educar o povo com bandeiras arco-íris e statements feministas mas o que é que querem – boys will be boys… Um sublinhado para a enorme baterista Katari. Mesmo indisposta com a sopa de cação e gim que deve ter tragado ao jantar, que a levou a abandonar o palco três vezes para aliviar o estômago no backstage, regressou sempre com redobrada energia, fazendo estremecer os pilares da SOIR com o seu pulsar possante e selvagem. Respect!
Sábado, 4 de Maio. Foram os Cassete Riscada que abriram a última noite, oferecendo-nos o seu costumeiro indie pop fresco e tropical. Já os conhecíamos da segunda edição do Capote, mas entretanto os putos são já homens e mulheres feitas, com uma estética precisa e madura. A sua inocência, antes bilhete de identidade, é agora puro estilo.
Os minhotos Malaboos vieram a seguir com o seu pós-hardcore sombrio e emotivo à Linda Martini. Quando até a verdejante Ponte da Barca se rende ao negrume depressivo sabemos que o fim do mundo está à porta. A vocalista tinha uma coolness gótica à Eduardo Mãos de Tesoura, mas além de filmes de Tim Burton intuímos na sua voz uma grande paixão pelos discos da Márcia. E a bateria troava com tal estrondo que o técnico de iluminação receou pela integridade das suas queridas luzes.
Os lisboetas The Quartet of Woah! chegaram com as suas longas barbas, declarando guerra a toda a música feita depois de 1975. Vieram para ganhar, levando tudo à frente, não deixando prisioneiros. “Setenteiros” até à medula, tratando por tu os Hawkwind, os Deep Purple ou os Jethro Tull, esmagaram-nos sob o peso do seu space rock. Vieram, viram e venceram.
A noite na SOIR não podia ter fechado de melhor maneira, com o colectivo Compadres a materializar o sonho de Manuel João de um rap alentejano. No seu âmago são dois DJs de hip-hop, cortando e colando batidas, e escangalhando gira-discos Technics com o seu aprimorado scratching. Mas como nem só de gira-discos vive o homem, a dupla eborense fez questão de ter in loco um baixo funky e uma guitarra bluesy a tornar tudo mais orgânico. A cereja em cima do bolo foram os convidados especiais, cantando e rapando por cima com flow, engenho e arte.
Os mais rijos ainda arranjaram força para rumar à discoteca Praxis, onde se dançou até o sol raiar ao som dos DJs Altamont. Mas tudo o que é bom um dia acaba, é uma verdade antiga. Fica ao menos o consolo: a vida são dois dias e o Capote Fest três…
Fotografia: Inês Silva