
“There is in all visible things an invisible fecundity, a dimmed light, a meek namelessness, a hidden wholeness.” – Thomas Merton
A sensação de um enorme vazio vai tomando conta de mim, como se de uma coisa física se tratasse. Alastrando-se, aos poucos, muito lentamente, doença que me paralisa até à imobilidade total. E assim, nesse estado, cedo involuntariamente a um estranho sentimento de perda, também ele arrebatador. Assola-me, nesse instante, uma serena tranquilidade, um deserto nascente. Não há lágrimas, nem sequer um esboço delas. Ouço vozes que me dizem qualquer coisa. Vozes distantes, em línguas que todos conhecemos, embora pouco inteligíveis. Depois há silêncios que se acomodam por entre os sons que dão forma a todo este movimento. Nesses silêncios, por vezes gélidos, por vezes mornos, há uma respiração igual à nossa, humana na mecânica dos gestos, mas que parece vir de um outro mundo, de um outro entendimento, de uma outra dimensão. Haverá sempre música para além da que reconhecem os nossos ouvidos. Isso seguramente, mas alguma inquietação começa a manifestar-se de forma quase impercetível. Nas dobras dos sons, na luminosidade sinuosa dos sons que vagueiam no ar que por um triz não se deixam ver, errantes, por entre as paredes brancas desta sala. Como se fossem companhias invisíveis, ao meu lado, fantasmas articulados ao toque instrumental que os desperta. E eu? E nós, que agora pareço vários, que se soltaram de mim? Para onde vão as almas que me pertencem? O que se passa agora, que se avizinha uma sensação anterior a qualquer outra, anterior às palavras que surgem também agora, enquanto lavro este terreno branco do papel, tão límpido, ainda mais límpido que as paredes desta sala? Resta-me ficar assim, quase mudo, sem poder dizer o que poderia, tivesse eu forma de vencer esta dolência instalada, este sofrimento prazeroso, este tímido desassossego de marés que vão e não chegam, e que regressam sem serem notadas. Haverá cais onde aportar todo este encantamento? Se me levantasse agora, veria da janela que se abre ao mundo um outro mundo que não este. Mas aqui tudo é limite, tudo finda, tudo se mede em tamanhos ondulantes… Estou cada vez mais distante de mim mesmo, como se não houvesse outra qualquer realidade, nem lá fora, nem cá dentro. A surdina do silêncio permanece, e há muito que faz eco em mim. Estou só onde me encontro acompanhado, e não sinto a mínima estranheza nisso.
Depois, há uma memória distante. Uma voz que me diz que o que já fui ainda existe. Que tudo o que já ouvi se repete eternamente, sem roupagens, sem disfarces, com a liberdade dos anjos. Depois, há uma memória mais próxima. A minha tia morta a lembrar-me que nasci no dia dos anjos da guarda, eu a correr para ela, sem pressa de chegar aos seus braços abertos, uma nuvem de sonho entre nós dois, eu vivo mas imóvel, ela irrequieta e jazente à minha espera. Finalmente o encontro dos seus braços com o meu corpo, e mesmo assim nem uma lágrima, nem sequer um esboço dela, porque a música nunca nos poderá fazer chorar. Para que serviria, se servisse para lamentos e aflições? O som continua errante, escondido em silêncios que se acomodam no meu passado, no meu presente, uma vez mais por entre os sons que lhe dão forma (há tanto tempo que não te via, Carlos, há tanto tempo), e de novo as vozes tão estrangeiras e tão nossas a perguntarem-me coisas aos ouvidos como isto: por onde andas, que idade tens quando te perdes, sabes que o sol, quando cai a noite, repousa em ti?
(a citação de Thomas Merton, que podemos ler na abertura deste texto, vem registrada no inlay do disco em causa e foi, como se perceberá, o mote das linhas que redigi enquanto ouvia, em repeat, o disco que nos dá a certeza absoluta de que só a beleza nos poderá salvar a todos.)