Tocar no Musicbox tem a sua responsabilidade. Não nos podemos esquecer que foi este o clube que em 2006 veio finalmente preencher o vazio deixado pelo fecho dos míticos Rock Rendez-Vous e Johnny Guitar. É nesta esconsa caverna do Cais do Sodré que a chama do rock alternativo português continua a arder. Foi por isso um marco na carreira dos Uaninauei estrearem-se aqui a solo. Já por cá tinham tocado duas vezes com outras bandas, mas sozinhos tem outro peso.
A sala não estava cheia, é certo. Nada de admirar. O Musicbox tem esta característica: consegue pressentir a qualidade de uma banda muito antes de ela chegar ao mainstream. E para uma banda que vem de Évora, bem longe do epicentro da indústria musical, e ainda para mais sem o apoio de qualquer agência ou editora, são muitos os obstáculos que dificultam a saída das condutas subterrâneas. Ainda assim, a banda eborense resiste ao cerco e com persistência vai trilhando o seu caminho. Não foi à toa que este ano se estrearam no Alive. Com o dobro do talento, do sangue e do suor, também eles conseguem lá chegar.
O concerto foi uma espécie de promoção oficial do EP Menina Vitória, antecâmara do longa duração Dona Vitória que sairá no início do próximo ano. O nome deste segundo disco tem uma história curiosa. Os Uaninauei estavam com dificuldade em encontrar uma sala para ensaiar, quando Dona Vitória, avó de uma amiga, gentilmente disponibilizou para o efeito a sua quinta nos arrabaldes de Évora. É assim no meio do campo, com a passarada a tentar fazer o ninho em cima dos amplificadores e a palha a esvoaçar à volta da bateria, que os Uaninauei vão criando as suas canções. Hoje o quinteto terá com certeza outras alternativas, mas é na quinta da Dona Vitória que continuam a preferir ensaiar. E talvez resida aí a origem do traço que talvez mais defina e singulariza o som dos Uaninauei: a mescla que fazem entre um rock pujante profundamente urbano e uma identidade alentejana orgulhosamente assumida. E este sábado, nas entranhas escuras de um clube lisboeta, foram múltiplas as referências bucólicas ao seu Alentejo de origem. Não no sentido de um etno-rock, longe disso, já que o processo é bem mais subtil. Mas o que é certo é que as pistas estão lá para quem as quiser seguir. São vários os exemplos. Numa tela por detrás do palco, eram projectados vídeos de camponesas alentejanas a ceifar o trigo, distorcidos com manchas psicadélicas em constante mutação. E outra imagem recorrente assomava nesta vídeo-montagem: a ceifeira estilizada em traços geométricos da capa do EP Menina Vitória (refira-se, aliás, que todo o grafismo é da responsabilidade do guitarrista Alexandre Tavares; os cinco músicos da banda podem tocar demasiado bem para serem punks, mas é punk a sua ética do it yourself). Por outro lado, as próprias canções tocadas carregavam esse legado cultural, em particular a “Assaltos Legais” e a “Aldeia sem Taberna”, onde cantares alentejanos são fundidos com as mais estrepitosas guitarradas. As próprias letras, assinadas pelo frontman Daniel Catarino (uma espécie de Mike Patton português, dado sofrer da mesma hiper-actividade e hiper-versatilidade musical, que o leva a – para além das suas funções nos Uaninauei – se desdobrar numa miríade quase infinita de outros projectos completamente distintos, como é o caso da música popular portuguesa de Bicho do Mato), remetem frequentemente para um imaginário rural. É o caso justamente da “Aldeia sem taberna”, deliciosa crónica das desgraças de um aldeão que, cúmulo dos azares, nem sequer tem uma taberna perto onde possa afogar as suas mágoas. Ou então da “Maria Manuela”, retrato feminino da mesma solidão. Foi talvez no decorrer desta canção do novo EP que aconteceu o momento mais alto do concerto, quando os cinco eborenses levaram a música para uma espécie de transe colectiva, em que Daniel Catarino, com um olhar psicótico e um estado de agitação muito próximo das convulsões de um epiléptico, conduz a sua guitarra etérea – e todos nós – para uma espiral crescente de loucura, deixando todo o Musicobox de boca aberta.
Mesmo num concerto em que o segundo álbum “Dona Vitória” foi tocado na íntegra, os Uaninauei ainda conseguiram arranjar espaço para duas malhas do Lume de Chão. Se, aliás, não tocassem pelo menos a – já clássica- “Chamas em Mim” (com o seu refrão certeiro que pega logo fogo aos ouvidos), seria quase certo que os seus fervorosos fãs expressassem a sua justa indignação com o mais violento dos motins. Felizmente para todos, tocaram-na, aproveitando até a deixa para apelar à compra dos discos: “Se tiverem guito, comprem-nos; se não, vão pedir ao governo”, disse Daniel Catarino com a sua habitual mordacidade. Num registo ainda mais a abrir, tocaram “Betoneira”, na qual o frontman desceu para a plateia e passou o microfone a um fã, que com todo o profissionalismo inerente à sua condição de fã, mimetizou ao milímetro os gritos originais da canção. Esta pequena amostra do disco de estreia foi o suficiente para perceber que aconteceu uma mudança significativa no som dos Uaninauei: Lume de Chão era mais agressivo e rápido, enquanto em Dona Vitória as influências do Trash Metal e do Hardcore estão mais diluídas numa estrutura mais tradicional do Rock. Daniel Catarino brincou até com esta alteração estética, quando anunciou “Virgem do Descanso”: “Agora, Uaninauei é só baladas, estamos velhos para o rock”. É natural que esta mudança no som aliene alguns fãs da velha guarda mais puristas, mas chegue também a novos fãs menos barricados no círculo do Metal. Mas, no fundo, num olhar mais atento, percebemos que a essência da banda se mantém afinal a mesma: rock and roll sincero, cantado em português, com refrões fortes que se atiram aos ouvidos, e um gosto indisfarçável pelo ritmo e pela experimentação, tudo isto embrulhado numa afirmação descomplexada das suas raízes culturais. O maior clube de rock de Lisboa foi inteiramente conquistado. Talvez a peça de dominó que faltava para se abrirem as demais portas. Rock on.
(Fotos: Mário Romano)