Eram 21h40 e já o público, que enchia o Coliseu, chamava por eles, quando a banda começou a entrar em palco. Soaram os primeiros acordes e um foco iluminou uma tela onde se adivinhavam as figuras dos protagonistas da noite, que ali permaneceram estáticos durante uns segundos e só depois vieram até à boca de cena. Vistos dos camarotes distantes reservados à imprensa, os dois heróis da noite pareciam-me duas pequenas figuras, do tamanho de bonecos da Playmobil, no meio dos raios deixados pelos focos que me ofuscavam e se difundiam assim que atingiam as lentes dos óculos que me ajudam, embora ineficazmente, a combater a miopia. A primeira música foi morna, mas, com o passar da noite, os pequenos bonecos da Playmobil foram-se agigantando até atingirem as proporções que o meu imaginário sempre lhes designara. Foi à terceira música que Sérgio Godinho e Jorge Palma pediram ao público que lhes desse lume, e o público atendeu ao pedido. A partir daí, estava lançado o mote para uma grande noite.
Quando dois nomes tão gigantes da música popular portuguesa, como Jorge Palma e Sérgio Godinho, se juntam para celebrar uma longa amizade e decidem partilhá-la com o mundo, a primeira reacção natural de qualquer pessoa que tenha sido marcada (ou seja, que alguma vez tenha ouvido as canções destes artistas) é de um enorme entusiasmo. Contudo, a mastigação da ideia levanta dúvidas naturais sobre como serão arranjados aqueles hinos que nos guiaram. Ainda assim, confiamos nos mestres e, esperançosos, lá vamos ver como é que duas mestrias distintas, resultam juntas. E resultam. Como não poderia deixar de ser.
Devo, contudo, admitir que, por vezes, me doeu na alma a nova roupagem dada a canções que conhecia tão intimamente. Foi o caso de “Dancemos no Mundo”, que perdeu o que de mais essencial tinha, a sua dançabilidade, ou “Mudemos de Assunto”, que perdeu a pujança que tinha na versão já partilhada pelos dois em Irmão do Meio. Mas nós perdoamos. Tudo o que nos deram naquela noite encheu tanto a alma, que não dá para não relevar qualquer deslize na fidelidade aos nossos temas de sempre. Até porque, se algumas canções perderam, outras ganharam com a cumplicidade de uma amizade de anos. “Minha Senhora da Solidão” ganhou um tom eclesiástico, que lhe assenta que nem uma luva, e “Portugal, Portugal” começou com um tom de canção de intervenção, que retornou, logo a seguir ao primeiro refrão, à sua matriz original, ainda que com mais pujança da banda, que foi capaz de elevar o que não precisava de maior grandeza. “Lisboa que amanhece” veio tarde e com uma roupagem mais crua.
A repartição de temas dos dois autores foi equilibrada, mas o concerto foi mais pautado por grandes sucessos de Jorge Palma do que de Sérgio Godinho, que só deu ao público as maiores canções da sua carreira nos (vários) encores que o público exigia… Como se nos recompensasse pela insistência… ou uma pequena arrogância de quem já sabe que será chamado de volta uma, outra e outra vez. Foi nos encores que ouvimos “A noite passada”, “Lisboa que amanhece”, que precedeu “A canção de Lisboa” de Jorge Palma, primeiro na voz de Jorge Palma e só depois na voz do seu pai. “Liberdade” deixou o público com vontade de mais e os músicos voltaram com o “Primeiro dia”. O palco estava a ser desmontado, mas ainda nos sabia a pouco. Sérgio e Jorge voltaram à boca de cena, já com a cortina descida, e presentearam-nos com “Encosta-te a mim” com um arranjo folk completado pela banda, que se juntou num registo acústico. A noite acabou “Com um brilhozinho nos olhos”. Na noite de quinta-feira, o que aconteceu no Coliseu dos Recreios soube-me a tanto, portanto, soube-me a pouco.
Fotos: Francisco Fidalgo