Foi a segunda vez que vi ao vivo um show de Thais Gulin. A primeira havia sido em maio, no Espaço Brasil, na Semana Jóias da MPB, em que a cantora do Paraná dividiu a noite com a carioca Nina Becker. Em ambas as ocasiões, a mesma ideia permaneceu: Thais é uma artista em formação. Para mim, que ganho a vida a dar aulas e a formar professores, a expressão em itálico é-me particularmente querida, porque nisso se vê claramente, e muitas vezes em embrião, algo que sabemos ser de enorme qualidade. Esse é, uma vez mais, o caso. Thais Gulin tem apenas dois discos de originais, e talvez essa seja a razão de nos ter dado, ontem, um show tão curto. Em pouco mais de 50 minutos, sem contar com os dois breves encores, Thais Gulin mostrou-se ao pouco público da Sala TMN (que a recebeu muito calorosamente, note-se) revelando presença personalizada, profissionalismo, simpatia e agrado em partilhar connosco a noite chuvosa lá de fora. Mas também revelou alguma timidez, algum nervosismo, que o seu ar de menina nem sequer tentou disfarçar. Antes assim. Foi mais sincero, o show. E foi bom, sem margem para dúvidas. Antes ainda do concerto começar, um dos momentos altos da noite aconteceu. Poucos deram por ele, tão distraído estava o público em conversas de copo na mão. Acompanhado por alguém que desconheço, o enorme Milton Nascimento entrou na sala, tranquilamente, e sem que qualquer aparato tivesse sido gerado. Parecia um comum mortal, e não a mega estrela que sabemos ser. Ver um ídolo de sempre passar a poucos metros de distância, mesmo que já tenha tido a oportunidade de falar com ele e de o cumprimentar efusivamente, mexe com qualquer pessoa, daí o registo desse acontecimento nestas linhas. Parece estar em boa forma, o bom e velho Milton, que se encontra em Lisboa para apresentar o show dos 50 anos de carreira, no Coliseu dos Recreios, no próximo sábado. Lá estarei, assim o desejo se concretize, para neste mesmo sítio vos dar conta de tudo. Mas vamos ao concerto da noite, então?
O concerto começou forte, com duas ou três canções de rajada, todas elas dignas de registo. “Ali Sim, Alice”, canção que Tom Zé fez para Gulin (com direito a uma pequena história introdutória e explicativa da forma como a canção surgiu), revelou-se imensa pelos ares da sala, porque na verdade ela tem o toque de génio que o cantor e compositor de Irará costuma dar aos seus trabalhos. A música é divinal, e a letra um primor. Os versos cantados levam-nos de imediato para o universo aliciano de Lewis Carroll. “Água”, do também grande Kassin, entrou de rompante, no seu ritmo (quase) frenético, e o público acompanhou, cantando o “pá, pá, pá, pá” do refrão. A versão que Gulin canta não tem a força da versão original (presente no disco Futurismo, de Kassin + 2), mas é muito equivalente à boa versão que o mestre Caetano levou ao palco no seu show Zii e Zie. Seguiu-se a velhinha “Little Boxes”, de Malvina Reynolds, que o público português talvez conheça, uma vez que foi usada como tema de abertura da maravilhosa série televisiva Weeds, portagonizada pela ainda mais maravilhosa Mary-Louise Parker. A língua inglesa não desapareceu, e o que se ouviu a seguir terá deixado algo espantado o público menos atento, uma vez que Thais Gulin cantou “Alabama Song (Whisky Bar)”, dos The Doors. Veio, logo em seguida, a antiga “Garoto de Aluguel (Taxi Boy)”, de Zé Ramalho, do disco de lançamento da cantora. A dupla Roberto e Erasmo Carlos também estiveram presentes com “Cama e Mesa”, numa versão mais roqueira do que a original, e a interação com o público não se fez esperar. A plateia sabia a canção de cor, e cantou-a com Gulin, que na sua delicada e entusiasmante timidez, se mostrou feliz pela comunhão das vozes do público com a sua. “Hotel das Estrelas”, de Jards Macalé e Duda Machado, foi outro grande momento do show, assim como a saudosa “Augusta, Angélica e Consolação”, de Tom Zé. Era desta forma que terminava o show que Thais Gulin nos tinha reservado. Muitas palmas, assobios, pés no chão, e Thais voltava sozinha para interpretar, à capela, o tema título do seu segundo disco. Não foi brilhante, diga-se. Mas seguiu-se a assombrosa “Cinema Americano” (uma das duas canções que repetiu, embora com uma novidade pelo meio, através da longa citação de “Baby Got Back”, de Sir Mix-a-Lot), canção de Rodrigo Bittencourt presente no muito bom ôÕÔôôÔôÔ, de 2011. Um segundo e também breve encore fechou definitivamente o concerto. Lá fora ainda chovia. Para condizer com a noite escura, na Sala TMN já nenhuma estrela brilhava.