Não obstante a cantora de jazz Stacey Kent ser norte-americana e viver em Inglaterra, jogou em casa no CCB. Passo a explicar. A ser verdade que a nossa pátria é a língua portuguesa, Stacey é nossa mais que merecida compatriota: foi na língua de Pessoa que Stacey cantou para nós muitas das suas canções (quem ontem não compreendeu os versos de “O Barquinho” e da “Insensatez”?) e foi no mesmo português adocicado do Brasil que conversou connosco (com uma fluência inesperada), confessando-nos (no preâmbulo à canção nova “This Summer We Crossed Europe in the Rain”) que a palavra portuguesa “saudade”, com aquilo que tem de mistura inextricável entre melancolia e esperança, é a única capaz de descrever convenientemente o sentimento com que canta.
Stacey ainda acrescentou mais duas razões para a cumplicidade que tem com o nosso país. Primeiro, a paixão que tem por Lisboa (“a luz”, dizia ela, “a luz”). Segundo, a parceria que tem desenvolvido com o poeta português António Ladeira: as letras das novas canções “A Tarde” e “Mais uma vez” são da autoria do escritor de Sesimbra.
Convém frisar que nesta sua conquista ao Grande Auditório do CCB, Stacey estava muito bem acompanhada, fazendo questão de trazer consigo a “crème de la crème” do “smooth jazz” inglês. E se Stacey frisou que “ama” três dos seus companheiros de banda (Jeremy Brown no contrabaixo, Graham Harvey no piano e Josh Morrison na bateria), confessou-nos igualmente que tem uma predilecção especial por um quarto elemento, de seu nome Jim Tomlinson, que não lhe bastando acumular as funções de director musical, compositor e multi-instrumentista (saxofone tenor e soprano, guitarra e flauta), não sossegou enquanto não fosse também marido da nossa diva.
O pretexto para este regresso de Stacey aos nossos palcos foi o lançamento do seu novo álbum: The Changing Lights. E Stacey levou bem a sério este empreendimento pois apenas duas das canções do último disco não foram revisitadas. Sabemos bem que em toda a discografia de Stacey o espírito brasileiro da Bossanova está sempre presente (desde que Stan Getz e João Gilberto gravaram juntos nos anos 60, houve sempre um rico intercâmbio entre a Bossanova e o Jazz) mas neste novo álbum a cantora norte-americana leva ainda mais longe esta sua paixão. E não me refiro apenas ao standards da Bossa (e.g., “Samba de Uma Nota Só” e “Estrada Branca” de Jobim); mesmo os originais escritos por Jim Tomlinson (e.g., “The Changing Lights” e “Waiter, oh Waiter”) têm sempre uma ambiência e melancolia “Bossanova”. É sempre nesse equilíbrio entre standards do “jazz” e originais de Jim Tomlinson que se tem construído a interessante discografia de Stacey Kent.
Não obstante a forte presença das novas canções, Stacey não quis desiludir os fãs mais nostálgicos, reservando um terço do alinhamento para as canções mais antigas (e.g., “Ces Petits Riens” de Gainsbourg; “Dreamer” de Jobim; “Samba da Benção” de Vinicius). Foi o caso da “Águas de Março” de Jobim, na qual Stacey demonstrou porque é que é uma das cantoras de “jazz” mais notáveis da actualidade: foi cantando cada vez mais baixo, até apenas sussurrar, e com que nitidez ouvíamos o seu sussurro, como se estivesse a segredar ao nosso ouvido. É essa a imagem de marca de Stacey Kent: o contraste permanente entre uma voz quente e possante e a extrema delicadeza com que sempre se expressa, num trabalho de subtileza e contenção absolutamente notáveis. Um grande concerto da única cantora anglo-saxónica capaz de compreender a saudade que logo sentimos quando nos deixou…
Alinhamento:
1- This Happy Madness/ Estrada Branca (Tom Jobim, Gene Lees, Vinicius)
2- The Changing Lights (Jim Tomlinson, Kashuo Ishiguro)
3- Ces Petits Riens (Serge Gainsbourg)
4- Waiter, oh Waiter (Jim Tomlinson, Kashuo Ishiguro)
5- O Barquinho (Roberto Menescal, Ronaldo Boscoli)
6- A Tarde (Jim Tomlinson, António Ladeira)
7- Dreamer (Tom Jobim)
8- Insensatez (Tom Jobim, Vinicius de Moraes)
9- One Note Samba/Samba de uma Nota Só (Tom Jobim, Newton Mendonça)
10- The Face I Love (Marcus Valle)
11- Mais Uma Vez (Jim Tomlinson, António Ladeira)
12- This Summer We Crossed Europe in the Rain (Jim Tomlinson, Kashuo Ishiguro)
13- Águas de Março (Tom Jobim)
14- O Bêbado e a Equilibrista (João Bosco, Aldir Blanc)
15- Smile (Charlie Chaplin, John Turner, Geoffrey Parsons)
16- Samba Saravah/Samba da Benção (Toquinho, Vinicius de Moraes)
Encore:
17- So Nice/Samba de Verão (Marcos Valle, Norman Gimbel)
18- Stardust (Hougy Carmichael, Mitchell Parish)
Fotos: Mário Romano