Há concertos que, só pelo nome, se tornam obrigatórios. Muitos de nós, nesses espectáculos, estamos dispostos a ignorar possíveis pregos movidos pela ferrugem da idade. Somos capazes de investir muito dinheiro em celebrações de monstros da música que, por vezes, já soam pior que muitas bandas de garagem. Mas, n’alguns casos, por mais que possamos questionar a velhice dos músicos, há cantigas que não morrem e, mais raro ainda, há instrumentistas que não enferrujam. Aliás, apenas solidificam as suas capacidades mitológicas. Foi exatamente isso que Sérgio Dias, o único membro original presente na atual formação dos lendários Os Mutantes, provou no Armazém F – mesmo que já nada tivesse que provar.
A história já é sabida. Viveu-se o tropicalismo há quase meio século. Na altura, de sorriso na cara e com muito pé irrequieto, o samba rebelou-se e o folgo brasileiro, sufocado pelo regime militar instaurado em 1964, respirou novamente graças a uma nova vaga de artistas. Na linha da frente, de cabelos longos e guitarras mais agressivas que as dos seus contemporâneos, estavam Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Dias que, juntos, formavam os “psicodélicos” Os Mutantes. O tempo passou, baixistas e bateristas entraram, Rita Lee e Arnaldo Baptista sairam, ficando apenas músicos colaboradores, o legado e Sérgio Dias.
De 1978 para 2015 foi um saltinho ao Cais do Sodré. Em quase uma hora e meia de concerto, os cinco músicos fizeram uma visita guiada ao passado, presente e futuro d’Os Mutantes. A viagem começou à hora combinada, em 1970 pelas 22h30, com “Tecnicolor”. Mesmo numa segunda-feira, um quase esgotado Armazém F já dançava como se fosse sexta-feira de uma balada em São Paulo. A boa disposição já estava instaurada, especialmente a de Sérgio Dias, que não parava de sorrir e de se sentir mimado: “Não dá p’ra levar vocês para casa?”, disse carinhosamente o guitarrista fundador d’Os Mutantes.
Mas só começou a ficar soalheiro e calorento duas músicas depois, após “Jardim Elétrico”, quando os primeiros sinais de “Bat Macumba” foram entoados, por brincadeira, pela guitarra de Dias. “Tem a certeza? Essa é música p’ra terminar show!”, disse o líder d’Os Mutantes, que decidiu alterar o alinhamento previsto para dar prioridade a uma das canções mais importantes da lenda Mutantes. A festa ficou feita e, daí adiante, nunca mais sentimos o chão da mesma forma. Sem nos darem oportunidade para respirar, “A Minha Menina” tornou a audiência, até lá meio adormecida, irrequieta e a querer entoar frases das canções. O mote do resto do concerto estava dado.
Esta ressurreição d’Os Mutantes fez desfilar os seus sucessos com novos arranjos, ora em tom de samba ou em tom metaleiro, com longas e psicadélicas jams que fizeram esquecer a plateia de qualquer velhice ou incompetência. Em “Top Top”, enquanto a diva Esméria Bulgari dançava freneticamente, partilhando o berro “sabotagem” com membros da audiência, Sérgio Dias improvisava, sem qualquer tensão ou nervosismo de palco, apenas envolto pelo ambiente de festa, tal como uma verdadeira lenda. Porque, afinal de contas, mesmo com os seus graves problemas de saúde, que o forçaram a ser assistido antes do concerto, Dias alimenta-se dos seus solos e do nosso carinho. “Vocês me renascem!”, acrescentou a lenda viva.
Mas a última meia hora de concerto foi a mais celebrada. Já a todo gás, com muitos sucessos na carreira ainda por escolher, os icónicos de São Paulo interpretaram a tropical “Ando Meio Desligado”, a stoner rock tropical “Cabeludo Patriota” – conhecida durante a ditadura militar como “A Hora E A Vez do Cabelo Nascer” -, e a “Balada do Louco”, que, entre isqueiros e vozes sincronizadas, se tornou num dos momentos mais bonitos da noite. Por fim, o encore previsível reviveu um dos hinos da tropicália e, a julgar pelas vozes do público, o tema mais conhecido entre a audiência: “Panis et Circense”.
A missão foi clara: tentarem ser uma banda que honra o seu passado, mas que procura um futuro igualmente bom. Os Mutantes deram chances a três temas de “Fool Metal Jack”, o novo trabalho, editado em 2013, mas tais canções foram as que menos entusiasmaram. Tirando isso, e a tenebrosa qualidade de som do Armazém F, o concerto d’Os Mutantes foi uma fiel viagem à década dominada pelos gigantes brasileiros.
Não estivemos lá, durante os anos 70, para os ver na sua forma original. Mas vê-los em 2015 não é um motivo de arrependimento, mas sim de alívio. Estes Mutantes, ao contrário do que muitos pensaram, não são uma banda tributo. O talento, trabalho e juventude impressionante de Sérgio Dias dão autenticidade necessária para não ser apenas uma banda tributo. Os Mutantes não morreram, estão em forma e aconselham-se.
Um breve, mas necessário, apontamento em relação à banda de abertura, os Ganso. Pertencentes à mais recente vaga de ouro do rock lisboeta, com a máxima em Capitão Fausto, os Ganso não destoaram d’Os Mutantes. Com mais de 40 anos de diferença em relação aos gigantes brasileiros, e com apenas o EP Costela Ofendida lançado, estes jovens cósmicos não mostraram o peso (ou qualquer nervosismo) da responsabilidade. A atuação de 30 minutos deu para aquecer o palco, e alguns dos fãs da banda que por ali estavam, tal como alguns curiosos, já abanavam a cabeça às progressões típicas de Pond com uma agressividade de Syd Barrett. Entre as mais aplaudidas encontra-se “Pistoleira”, que tem andado a rodar nas rádios portuguesas. Apesar do desprezo de alguns que assistiam na plateia, o futuro augura ser bom para os Ganso. Não apresentam nada de novo, mas sabem executar na perfeição as fórmulas criadas pelos pioneiros do psicadelismo – entre eles, Os Mutantes.
Fotos: Francisco Fidalgo
demais! amei as fotos…