
Uma hora e poucos minutos de violência e intensidade inclassificável. Foi dessa maneira que o Musicbox viveu, no passado sábado, dia 11 de dezembro, o concerto dos Mécanosphère. Após dez anos, já com três discos longa-duração no arsenal, o conjunto transnacional, fundado pelo francês Benjamin Brejon e vitalizada pelo irado (e lendário) sussurro de Adolfo Luxúria Canibal, voltaram a pisar os palcos – e a espezinhar o público com música nova. Mal sairam da hibernação, não perderam tempo para lançar o quarto álbum, “Scorpio”, que serviu de pretexto para o encontro no Cais do Sodré do fim-de-semana anterior. Mas, ao invés do que manda a regra dos concertos de apresentação, os Mécanosphère pouco tocaram do novo disco, pelo menos de forma flagrante, e apresentaram um alinhamento frio, pesado e emocional – sem interrupções e sem interações (só duas palavras foram dirigidas ao público: “Boa noite”). A audiência era pouca, quase metade do Musicbox, mas o calibre do espectáculo provou porque é que são um dos diamantes mais versáteis e complexos, embora acessíveis e diretos, do experimentalismo europeu do início de milénio. Segundo o relógio de Adolfo, 23h23, hora que deu início ao concerto, eram “horas de matar” – mas com ritmos dançáveis, barulho organizado e, à boa moda de Luxúria Canibal, murros no estômagos vindas de punchlines repletas de podridão mundana.
Violento? O espancamento, sem qualquer recurso ao mosh, apenas precisou de uma amalgama, monótona e perturbadora, de 8 instrumentos. Um baterista, dois baixistas, um saxofonista, um teclista, um homem responsável pelos sintetizadores e, claro, a voz de Adolfo Luxúria Canibal. Mas, tal como se ouvia vindo d’alguém na plateia do Musicbox, “e esta jarda do caralho?”. A intranquilidade singular de Mécanosphère ocorre quando, à mistura com os instrumentos, Benjamin Brejon (um dos co-capitães a bordo desta viagem) começa a gerir os caóticos ruídos gerados pela panóplia de pedais de efeito, loops e tapes que tem ao seu redor.
Inclassificável? Mécanosphère é uma locomotiva noise e industrial, movida a ritmos hip hop, solos free jazz do saxofonista e dos guturais fantasmagóricos do spoken word de Adolfo Lúxuria Canibal, o outro co-capitão desta viagem que não tem destino – tal como um cão raivoso que não sabe quando parar de morder.
Intenso? Apto para narrar qualquer pesadelo, Adolfo Luxúria Canibal petrificou, como sempre, a plateia. Agarrado às folhas de papel e com expressões faciais iradas e desesperantes, a inconfundível voz bracarense berrou. E berrou. Enumerando pesos de existir e dores de crescimento: “tinha os olhos abertos, mas não via”. Em o “Hábil Povo das Máquinas”, tema do novo disco que abriu o concerto, Adolfo merecia o título de MC Canibal. Imagine que os Mão Morta, preservando a sua voz e as suas linhas de baixo mínimalistas, tivessem ouvido “Ascension” do Coltrane e os ritmos de “Enter The Wu-Tang Clan” dos Wu-Tang Clan, com uma dose de “Opus Deis” dos Laibach. É dessa maneira que se forma a estranha (mas ousada) nova intensidade que apresenta o coletivo liderado por Canibal e Brejon. Estranha-se e, depois, um misto de reações – que vão do dançar ao chorar: “O ferro era o seu sangue, a chama o seu cérebro”, berrou constantemente Adolfo, frase essa retirada do poema “A Dama tinha um vestido”, de Guillaume Apollinaire, poeta do século XIX, mais conhecido por ser o inventor da palavra “surrealismo”.
Era 00h35 e, de costas viradas para o público, uma jam barulhenta, negra e irrequieta concluía o concerto. A viagem tinha terminado, e o público, ainda atordoado e cheio de nódoas negras, recuperava. Mas, tal como aconteceu na ZDB em julho de 2006, dificilmente ficaremos curados desta sova. “O amor pertence aos morto. O atroz oxigénio transforma-se em dióxido carbono! Grandes ventanias do pó invadem a atmosfera.”
Um breve, mas necessário, apontamento aos Wildnorthe, a banda de abertura, que também por ali tocaram material novo, retirado de “AWE”, EP lançado em setembro. A música deste duo elétronico pratica o melhor (e o mais romântico) da darkwave, sem descorar de ritmos maquinais, habituais na música industrial. Também dotados de uma postura robótica e fria, os Wildnorthe não destoaram de Mecánosphère. O Musicbox, na altura cético e quase vazio, recebia friamente uma banda ainda em crescimento, mas que já espalha alguma magia. Em “AWE”, a canção que mais celebrada e sentida, a voz de Sara Inglês, em constante diálogo com os cantos (quase) gregorianos de Pedro Ferreira, faziam lembrar o negrume doce de Chelsea Wolfe. Tirando algum excesso de reverb, habitual no género mas confuso para o ouvinte, os Wildnorthe ameaçam liderar cartazes de eventos, ao invés de abri-los.
Fotos: Filipa Leite