
De corpo cansado mas de espírito quente, lá subimos a rua que vem do “satélite” de Matosinhos. Chegava o último dia de NOS Primavera Sound e, depois dessa noite, todos iriamos para casa não só cheios de coroas de flores, sacos desdobráveis em mantas e girassóis gigantes mas, mais que isso, íamos para casa de barriga cheia de boa música. Boa música que durante estes três dias tornou o Parque da Cidade uma clareira mágica onde melómanos conseguiram, mais uma vez, ser felizes.
Passadas as várias estações de controlo às entradas e chegando ao início da vala que tantas pessoas fizeram de anfiteatro, éramos bafejados ao de leve com um solzinho tímido mas sorridente, só cortado por uma aragem que não nos fazia esquecer de ter o casaco à mão. Que belo fim de tarde estava: os portugueses You Can’t Win Charlie Brown fizeram do Palco NOS seu… quer dizer, não o fizeram só seu, fizeram-no de todos nós, que os víamos envolvidos num abraço ternurento. Deitados na relva, de cerveja na mão e óculos a servir de moldura para o céu mascarrado, ouvimos Diffraction/Refraction (“Be my World” ou “Shout”, por exemplo) dominar a setlist, com uns laivos de Chromatic a dar um ar de sua graça. Seria com “Heroin” de Velvet Underground que a atuação chegava ao fim. E que fim. Grande passagem dos lisboetas YCWCB pela Invicta.
Poucos minutos depois, um pouco mais ao lado no palco Super Bock, Lee Renaldo and The Dust de guitarras em punho honraram aquela franja mais solarenga do indie-rock. Já em pleno fim-de-tarde, o ex-Sonic Youth comprovou que esta sua peripécia pelo mundo do artista solitário é mais que boa oportunidade para explorar, fazer experiências sem dever nada a ninguém. A voz já não dá para muita coisa, mas Renaldo continua a fazer magia entre dedos e cordas, saltitando de riff em riff como se nada fosse. Destaque para um muito bom “Lecce, Leaving” e “Black Out”.
Foi ainda com Renaldo a tocar que se decidiu vaguear pelo resto do recinto: muita coisa desconhecida a tocar ao mesmo tempo e foi-se molhar o bico noutras chafaricas. Azar o nosso quando uma delas foi a que tinha Hebronix a tocar. Numa dissertação musical bipartida, Daniel Blumberg, ex-Yuck, e um compincha levaram o prémio do momento “What the Fuck” do dia. Num shoegaze (será mesmo?) mutante, vanguardista e sofrido, conseguiu deixar embasbacada a plateia que se ia formando para Yamantaka//Sonic Titan, próximos a tomar o palco ATP.
Meio baralhados com o que se tinha acabado de ver, tomou-se caminho para os comes e bebes, para que Neutral Milk Hotel, caísse bem. Não caiu. E não foi da venenosamente boa bifana que se comeu.
Jeff Magnun subiu primeiro ao palco, sozinho, e começou, humildemente, claro, com respeito e consideração para quem tinha pago para os ver, pedindo que ninguém fotografasse nem levantasse telefones. Toda a gente ficou meio sem saber o que se passava, mas pronto, “Two Headed Boy” soava bem e ninguém pensou muito mais nisso até que viram que nada passava nos ecrãs laterais do palco. “Mas queres ver que o LCD se avariou?” Perguntou alguém para o ar, mas não, foi apenas mais um acesso de demência arrogante de quem não é assim tão bom para ter peneiras tão grandes. Não permitiram repórteres fotográficos durante a atuação, também, por isso não haverá foto a ilustrar este momento. Mesmo que houvesse, não seriam merecidas. Depois de 10 minutos razoáveis, a voz Billy Joe”esca” começava a cansar e ir fazer xixi pareceu melhor opção do que continuar ali.
O que vale é que uma das coisas boas que o Primavera tem é, precisamente, variedade, o que permite passar do muito mau para o muito bom: foi o que aconteceu. No palco Super Bock, enevoado pelo fumo das máquinas e as luzes aos tremeliques, John Grant deu um concertaço. Quando quase toda a gente já só trauteava “Fake Empire” (Grande séquito dos americanos nessa noite), Grant consegui com a sua eletrónica certinha e fresca puxar pela multidão. Pale Green Ghosts , último álbum do ex-The Czares, mostrou esta nova cara do artista/letrista. Músicalmente harmoniosas e contagiantes, as melodias apenas polvilhavam a força da letra que saia daquela voz de barítono experiente. Músicas como “GMF”, “Pale Green Ghosts” ou “Black Belt” deixaram o ambiente bem mais cheio do que os NMH tinha deixado. Não há dúvida que Grant é o “Greatest motherfucker that we’ll ever meet”.
E chegava a hora: as cabeças multiplicavam-se monte acima. Por entre apertos e passagens estreitas, os mais aventureiros furavam em direção ao palco. Neste momento vou passar a ser mais óbvio, mudar para uma primeira pessoa assumida e deixar-me de merdas. Os The National ultrapassam, pessoalmente, grande maioria daquilo que se ouve hoje. Ouvi-los ao vivo é mais que um concerto. É uma experiência sensorial e emocional como poucas. Dos arrepios às lágrimas sacanas que nos partem a fachada de durões, há algo de mágico por entre Matt e companhia.
Trouble Will Find Me foi álbum reinante no alinhamento de cerca de 20 músicas. Houve High Violet através da triste e desiludida “Conversation 16” ou “Sorrow”, que contou com a participação especial (já atirada ao ar por muitos no recinto) de St. Vincent, que atuaria pouco depois. A energia era contagiante: num registo totalmente diferente daquele de Novembro passado no Meo Arena, os norte-americanos apostaram na força em vez da delicadeza, com mais guitarradas elétricas em vez de acústicas (como fã, senti falta de “About Today”). Mas nada que prejudicasse a grandeza deste momento. Se as emoções estavam já inflamadas, cada vez que Boxer espreitava, despedaçava-me por completo. “Slow Show” e “Fake Empire” foram demolidores. Num estado de semi-transe, de olhos fechados e coração na boca, cantei, franzi os olhos e pus os braços no ar. Eu e o Parque da Cidade.
No meio desta enxurrada de emoções, “Mr. November” chegou e Matt teve de fugir dele. Em direção à plateia lá foi, para delírio dos fãs que se atropelavam para lhe tocar. Eu fui um deles. Num momento cego de inconsciência, furei em direção à molhada que quase o engolia, na irracionalidade tonta da mentalidade groupie. Valeu a pena: consegui vociferar uns versos com o braço em torno do carismático Berninger. Um “Vandelyle Cry Baby Geeks” algo tímido, em comparação com o concerto do ex-Pavilhão Atlântico, fechou a atuação. Uma valente salva de palmas… mais que bem merecidas. A única dor de coração que permaneceu, indelével, foi não ter conseguido ver Charles Bradley – esse senhor é fantástico.
Com vários outros concertos a começar, o ritmo da noite subia e St. Vincent sentiu isso. Num jogo interessante entre música e dramatismo, tocou guitarra até não poder mais, numa atuação que se centrou mais no último álbum – “Birth in Reverse” pôs toda a plateia a cantarolar.
Fica também um apontamento para Ty Segall, que, apesar de não trazer os Fuzz consigo, não se sentiu menos capaz de “rockar” com os muitos que quiseram aproveitar ao máximo este último dia.
E assim foi: mais uma edição do NOS Primavera Sound chega ao fim e saímos dela empanturrados de ótimos concertos, grandes surpresas e poucas desilusões. Naquele festival que continua a ter uma das ambiências mais especiais de todos, os dias passam a correr, mas pelo menos é uma corrida muito linda. Parabéns a todos envolvidos não só pela organização como pelo esforço e entrega que faz deste, um dos melhores festivais de música do país. Até para o ano.
(Fotos: Daniela Filipa)