
Terceiro e último dia. Começo mítico, meio inacreditável, final apoteótico.
Os primeiros acordes da tarde vinham da guitarra de Manel Cruz. Um dos artistas do festival que menos precisa de apresentações, Cruz jogou em casa. Seguro de si, deu amor em doses generosas num concerto onde revisitou a sua carreira nos projectos Ornatos Violeta, Pluto, Supernada e Foge Foge Bandido, tocando também outras canções soltas que avivaram a chama de um dos melhores letristas e artistas portugueses de sempre: ele próprio. Desde o fado tempestivo de uma nova canção com um verso tão inventivo como “Na minha aldeia chamam-me maluco por não fazer a barba às ideias” à nostalgia e pós-inocência da “Canção da Canção Triste”, passando por “ovo” e outros temas impressionantes. Sem pretensiosismos, sempre com um à vontade inigualável, Manel Cruz não poderia ter começado o último dia de festival de uma melhor maneira.
Corríamos para o palco ATP para assistir a outro dos grandes, dos tais cujas apresentações são banais e completamente desprovidas de necessidade. Falamos de Thurston Moore, acompanhado pelos já habitués Debie Googe (My Bloody Valentine), Steve Shelley (Sonic Youth) e James Sedwards, com quem gravou o último The Best Day, principal elemento das actuações que Moore tem feito. Drones elípticos acariciados numa Fender Jazzmaster gasta noutros tempos de juventude sónica, uma distorção interminável, majestosamente dominada. Moore é senhor de si próprio e do seu som, embalando-nos para sempre em “Forevermore”, “Speak to the Wild” e as restantes canções sem fim que fizeram o concerto.
Que dizer de Foxygen. Psychfunkdiscopunk, todas as décadas desde os anos 60 num só concerto, numa só banda, todos os frontmans do universo num só – sentia-se Elvis, James Brown, Lou Reed, Mick Jagger, John Lennon, até Julio Iglesias-, toda a energia duma vida numa hora só. Uma performance inacreditavelmente inacreditável, onde tudo era música, onde tudo era espectáculo, magia, onde tudo era verdade e mentira, onde tudo era exagero e onde nada era suficiente. Um dos concertos mais intensos do festival, onde toda a gente deu o litro, o tudo por tudo, onde o rock teve a sua maior manifestação e emoção. O delírio divino em “On Blue Montain”, a roda do coro em volta de Sam France em “Shuggie”, a mágoa amorosa de “No Destruction” e o caos instalado do início ao fim, não havendo lugar pra respirar, música que não se aproveitasse. Final lindíssimo onde o Sol e “Everyone Needs Love” se alinharam, juntamente com a colina do Parque da Cidade e os pés que a pisavam.
De volta para o ATP. “German engineering!”, brincou Jochen Arbeit, guitarrista dos Einstürzende Neubauten. Foi bem-humoradamente que se descreveu com exactidão o que se encontrava no palco: sucata tornada instrumento, parafernália bizarra, geringonças, bricabraques, engenhos diversos – um dos quais fazia chover (!) controladamente pedaços de metal partido. A musica inclassificável da banda veterana do ex-Bad Seeds Blixa Bargeld fez mossa. O vocalista mostrou-se em topo de forma: moroso, soturno e desconcertante no seu sussurrar quando o som assim o exigia, mas igualmente pujante, destruidor, colossal nos crescendos magníficos oferecidos pelos experientes companheiros de banda. Sons peculiares por vezes atonais, por vezes melódicos, mas nunca conformados com o que a musica é suposto ser. Uns bravos, estes senhores.
Não sendo o maior fã de Death Cab For Cutie, há que lhes dar o mérito da quantidade de gente e emotividade que conseguem trazer num só espectáculo. Plateia cheia pra reviver os dias de adolescência onde “I Will Possess Your Heart” tocava incessantemente num qualquer dia chuvoso e rabugento. Desculpando os portugueses pela tampa que levaram em 2012, aquando do cancelamento da banda no mesmo festival, seguiram por um alinhamento que fez disparar canais lacrimais sem dó nem piedade, enquanto Ben Gibbard agitava e agitava o cabelo, em celebração do perdão dos fãs.
Quem achasse que a mágoa adolescente ficaria por ali, estava enganado. Bastava andar cinquenta metros e uma das maiores bandas do shoegaze, os Ride, mostraria que, volvidos 25 anos da edição de Nowhere, as correntes de guitarras oceânicas e os coros pastosos ainda soavam como início, sem ponta de velhice. Andy Bell e companhia trouxeram mais uma dose considerável de nostalgia ao festival, deliciando os fãs e os curiosos com um concerto competente e enchedor de medidas.
O festival começava a chegar ao final e as pessoas a aperceber-se disso. Daí que o resto do mesmo tenha passado pelas enchentes infindáveis de pessoas no concerto explosivo, pixelizado colorido de Dan Deacon, com tanta ordem quanto caos, com tanto de math pop como de meth pop; no techno emblemático dos Underworld – contando com a clássica “Born Slippy” que, com um vale cheio de adeptos do dartudismo, foi um dos melhores momentos do festival -; no punk matemático e calculado dos Ought, na escuridão caótica e experimental de Pharmakon e a electrónica extremamente pulsante e frenética dos HEALTH. As saudades já se começavam a sentir e os três dias a saber a pouco, mas tudo o que é bom acaba rápido. Pró ano há mais. E como disse o vocalista Karl Hyde no final do concerto dos Underworld, “Have a great summer!”.
Texto: Francisco Marujo e Guilherme Portugal
Fotos: Sofia Mascate