O aquário da Galeria Zé dos Bois foi o primeiro a ouvir as músicas novas de Carlos Medeiros e Pedro Lucas, que têm novo disco acabado de lançar. Terra do Corpo é uma continuação de Mar Aberto, que saiu há precisamente um ano e, como se nota logo no nome, há uma mudança de paradigma. Do mar passamos para a terra e agora a viagem faz-se mais dentro do próprio corpo, é menos do plano existencial espiritual e mais da carne.
Em palco, comprovou-se precisamente isso. Onde antes tudo era mais contido, numa tensão que queimava em lume brando, agora aproveita cada oportunidade para explodir. Já assisti a vários concertos de Medeiros/Lucas, mas este foi o primeiro em que os vi assumir uma nova dimensão – de banda rock. Embora em moldes pouco previsíveis.
Carlos Medeiros, barba e cabelos brancos, está longe do arquétipo do tradicional frontman de banda rock, até pela timidez com que encara o público que tem à frente – mas essa timidez é comida por uma confiança e segurança na voz, que já se sentem em disco, mas que ontem estavam ainda mais evidentes. Pedro Lucas, que já se havia assumido como guitarrista de excelência, mostrou ontem uma nova faceta – de guitarrista rock a sério. Já o tínhamos ouvido a construir teias e dedilhados elaborados, que se entrelaçam hipnoticamente com a voz, mas ontem na ZDB mostrou-se um verdadeiro animal de palco. Maestro que vai coordenando a orquestra, mas que frequentemente se atira à guitarra com uma quase fúria, que não ouvimos nos discos, oscilando entre uma espécie de noise à Sonic Youth e solos desenfreados à Angus Young.
Se fosse para descrever o concerto de ontem numa palavra, seria mais. Tudo esteve mais do que é habitual. A percussão tribal, por Ian Carlo Mendonza, estava mais tribal. Os momentos rock foram mais rock, as inspirações no Médio Oriente foram mais hipnóticas. Tudo estava mais alto, mais forte, os músicos mais soltos, mais confiantes. Deram à música uma dimensão de maior grandiosidade, mas sem nunca perder de vista o insular tradicional que está na génese destas canções.
Em cerca de hora e meia, mostraram quase todos os temas do novo disco – com destaque para “Quarto Vazio”, com a participação especial de Selma Uamusse, numa prestação ainda mais impressionante do que em disco. O vozeirão dela deve-se ter ouvido no Largo de Camões, arrepiando todos no caminho.
Houve ainda espaço para três músicas do álbum anterior mas com uma pujança como nunca tinham sido tocadas. Por exemplo, no “Fado do Regresso”, onde até aqui a traineira ia a meio gás, agora vai a todo o vapor.
No concerto de ontem sentiu-se essa plena marcha do navio, parece que toda a energia e tensão contidas nos discos, se soltaram no palco da ZDB, tal foi a força das guitarradas, a garra no cantar, o vigor quase bruto nos tambores.
Fotos gentilmente cedidas por Vera Marmelo