Lenine já passou por Portugal inúmeras vezes, e eu nunca tive oportunidade de o ver ao vivo. Lamento após lamento, fui levado a pensar que as coincidências podem, de facto, ser um fardo pesado. Mas nem tanto, digo eu agora. Finalmente consegui o que sempre quisera, e as expectativas que vinha juntando há muito não foram defraudadas. Lenine é um músico com um percurso longo e respeitado (já lá vão mais de três décadas), pelo que naturalmente já nada tem a provar ao mundo, e muito menos a mim. Bom conhecedor da sua obra, sobretudo desde o seu primeiro disco (Baque Solto, gravado a meias com Lula Queiroga) até a Falange Canibal , continuei atento ao que foi fazendo posteriormente, embora de forma já não tão cuidada como aconteceu até ao disco de 2002. A razão desse ligeiro distanciamento é simples de explicar: a linguagem musical de discos como Labiata ou Chão nunca me pareceu ter a mesma elevada qualidade de O Dia Em Que Faremos Contato (cuja apreciação pode ler aqui) ou Na Pressão, por exemplo. No entanto, Lenine é incapaz de fazer um disco abaixo da mediania. Isso parece-me fora de qualquer discussão. Assim, os dados estavam lançados para uma grande noite na sala mais nobre do CCB, por via da edição do Misty Fest deste ano. Foi preciso ter paciência, mas valeu a pena a espera.
Este foi um dos melhores concertos que tive o prazer de assistir em 2015. Apenas com duas guitarras em palco, a sua voz e a beleza das palavras cantadas, Lenine cedo mostrou que iria fazer da noite de ontem, um momento memorável. Estava visivelmente feliz, sobretudo por saber que iria ser compreendido. Ainda na véspera havia cantado em Amesterdão, e muita da riqueza da sua arte se perdera pelo não entendimento dos seus versos por parte do público ouvinte. Confessou-nos isso, assim como também não escondeu a satisfação de estar entre gente que entende a língua “que os ingleses e os franceses invejam”. Disse, a esse propósito, que eles “não sabem o que é uma esdrúxula”, e que não entendem a beleza sonora de palavras como lâmpada, ou límpida”, afirmando ainda que “cantar e ter a certeza de ser entendido é foda!”.
E assim fomo-nos entendendo a noite toda, começando o show com “Tuaregue e Nagô”, depois “Martelo Bigorna” e “Miragem do Porto”, primeiro momento de suprema beleza do alinhamento, logo seguido por outro instante de imensa sensibilidade lírica e melódica (duas expressões esdrúxulas, por sinal), com a velhinha “O Último Pôr do Sol”, do já bem distante Olho de Peixe, álbum gravado em parceria com Marcos Suzano, em 1993, e um dos mais importantes discos da carreira do pernambucano. O show estava intenso e íntimo, ao mesmo tempo. Parecia um namoro entre palco e plateia. Namoro firme, dos bons, delicado e atrevido, embora comedidamente, como obriga qualquer relação civilizada.
Do seu mais recente disco, “O Universo na Cabeça do Alfinete” foi a primeira canção a surgir. Depois houve “Rosebud (o Verbo e a Verba)” entoado a várias vozes que respondiam da plateia aos pedidos de Lenine, no palco. “Gandaia das Ondas / Pedra e Areia”, “Relampiano”, “Chão”, “Castanho” e “Simples Assim” apareceram como que de mãos dadas, num perfeito encadeamento. Um novo e altíssimo momento surgiu com a sublime “A Rede”, incidentalmente atravessada, para delírio do público, por “País Tropical”. Estava imensa e bonita, a festa que Lenine nos havia preparado. O músico do Recife soube muito bem receber Lisboa no seu show. “Hoje Eu Quero Sair Só” mereceu nova manifestação de afeto por parte da plateia, assim como “Leão do Norte”. Depois, “Jack Soul Brasileiro” acirrou a festa em toda a sala. As grandes canções são intemporais, e contra esse facto nada há a fazer. Resultam sempre, e resultam sempre muito bem, mesmo quando despidas da energia elétrica que as fez memoráveis. Seguiu-se “Do It”, e com ela o final do espetáculo. Lenine saía do palco com o coração cheio! Tão cheio que veio transbordar um pouco dessa imensidão de carinho que o público tão bem lhe soube endereçar, através de dois encores. No primeiro, brilharam “O Silêncio das Estrelas” e a inevitável “Paciência”, cantada na totalidade por Lenine e por todo o público. Saiu do palco com os aplausos merecidos, para logo voltar com a maravilhosa “Todas Elas Juntas Numa Só Vez”, interrompendo-a por esquecimento da letra, uma vez que “usa umas certas ervas que…”, fazendo um gesto ilustrativo de que a memória nem sempre lhe valeu ao longo de mais de 30 anos de tantas e tantas canções. Por fim, resolveu tocar “Quede Água?”, recente canção de Carbono, cuja magnífica letra é um autêntico hino à estupidez humana.
Uma hora e meia depois de Lenine ter iniciado o concerto, as centenas de pessoas que tiveram o privilégio de o assistir, estavam radiantes e felizes. Lenine soube acender, no coração de cada um, a chama da alegria que a música tantas vezes tem o condão de revelar. A minha, se assim posso dizer, não se extinguiu a noite toda, nem mesmo quando os olhos se fecharam até voltar a ser dia de novo.