
O Fusing Culture Experience arrancou esta quinta-feira, na Figueira da Foz. No primeiro dia, as atenções centravam-se sobretudo nos concertos de You can’t Win Charlie Brown e Capicua. Mas houve também espaço para promessas que não deixaram os créditos por mãos alheias.
Apesar de The Fat Truckers e Ghettoven terem assumido a responsabilidade de abrir as hostes do Fusing Festival no palco Lounge Pleno, o recinto encontrava-se deserto. Foi a música do quarteto de Jazz liderado pelo saxofonista Mário Santos que acolheu os que iam entrando aos poucos no recinto do Fusing. Eles tocavam no palco Cooking Lounge Pingo Doce, o primeiro palco com que os festivaleiros se deparavam ao entrar. A postura serena e jovial de cada tema do “Nuvem”, último álbum deste quarteto liderado por Mário Santos, assentava coerentemente com o ambiente que se sentia. Ainda eram poucos, mas já se consumiam as primeiras imperiais que, debaixo de um sol e por cima de confortáveis grãos de areia, acompanhavam muito bem uma autêntica jam session jazzística.
Porém, o primeiro grande momento do dia deu-se com o multi-instrumentista Noiserv, no Palco Experience. O concerto começou por volta das 20h00. Perante uma plateia inicialmente despida, mas que com o tempo se foi compondo (embora nunca chegasse a estar cheia), Noiserv transpôs com sucesso a sua música de estúdio para concerto.
A complexa orquestração dos seus temas exigiu deste one man band a utilização de uma loop station, que usou enquanto ia alternando os diversos instrumentos das suas canções (guitarra acústica, sintetizador, megafone sob pedais de efeitos, metalofone, entre outros). A densa rede instrumental foi, tal como em disco, utilizada para servir canções que transportaram o público para o seu universo intimista. Tocando músicas menos recentes, como Mr. Carousel, The Sad Story of a Little Town e Palco do Tempo, e outras do seu mais recente disco, Almost Visible Orchestra – de 2013 – (incluindo as radiofónicas Today is the same as yesterday, but yesterday is not today e I was trying to sleep when everyone woke up), a singularidade de Noiserv saiu incólume às condições atmosféricas (o vento fazia-se ouvir de forma ruidosa e intensa) e ao contexto de festival (onde a presença de público com interesses diversos levava ocasionalmente a que se ouvisse pela plateia conversas incomodativas para a atmosfera íntima de David Santos).
Os For Pete Sake foram os primeiros a abrir o palco Fusing, por volta das 21h. Com eles trouxeram uma música que, carecendo ainda de uma identidade unificadora, deixou a promessa de uma boa carreira pela frente. Fortemente suportados pela belíssima voz de Concha Sachetti, os For Pete Sake mostraram um indie-rock capaz de oferecer belíssimas canções pop com o cantarolável e solar single House. Mostrando ainda, aqui e ali, algumas canções menos conseguidas (a conhecida “Got Soul”, por exemplo, peca um pouco pelo menor valor dado à secção rítmica da banda e pelo ritmo excessivamente lento que a torna um pouco previsível), os For Pete Sake compensaram com alguns momentos de grande brilhantismo, ora mostrando a agradável matriz dançável do seu rock (os coros e o sintetizador ajudam a criar essa envolvência), ora surgindo aqui e ali com solos prolongados de guitarra, que às vezes se soltaram de forma feroz e – aqui e ali – distorcida. A grande chave da banda, porém, é mesmo a belíssima voz da vocalista. Muito comunicativa (agradecendo várias vezes a possibilidade de tocarem no Fusing e também a presença do público, chegando a dedicar uma música à plateia e pedindo muitas vezes que esta se aproximasse e dançasse ao ritmo das músicas), foi o maior centro das atenções do pouco público presente.
Já os First Breath After Coma foram uma das surpresas deste primeiro dia. Apesar de actuarem no palco secundário, com o concerto a coincidir com o de For Pete Sake no palco principal, o número de público que tiveram não foi inferior. E a banda cumpriu com as expectativas da plateia, transpondo com muita competência técnica as suas canções do álbum de estreia – The Misadventures of Anthony Knivet – para o palco. Recorrentemente comparados com a banda Explosions in the Sky (referida habitualmente como influência tutelar), o pós-rock cantado dos First Breath After Coma marcou a noite no Palco Experience. A banda apresentou um cover da canção Wait, dos M83, e mostrou que o género em causa não lhes coloca entraves à exploração de outras sonoridades, mais ambientais e etéreas.
Ainda em processo de crescimento, e à procura de uma identidade que firme ainda mais a sua posição no rock português, a banda mostrou a precisão e concentração que lhes são reconhecidas – mas foi na canção «Escape», com que terminaram o concerto, que a banda criou um momento impressionante e que lhes valeu uma saída em grande estilo: nesta canção, a secção rítimica vira ferocidade desvairada, as vozes são entoadas como se não houvesse amanhã, e foi ali que se sentiu, verdadeiramente, a emergência de uma banda promissora a soar como é: jovem, desafiadora, solta e destemida.
A rapper Capicua chegou, viu e venceu. A portuense, que editou em Março um dos dois melhores discos do hip-hop nacional em 2014 (o outro é o disco homónimo de estreia dos 5-30) confirmou esta noite, caso a confirmação ainda fosse necessária, que é hoje um dos nomes mais relevantes da música portuguesa.
Poucos foram os nomes ligados ao hip-hop nacional tão consensuais e capazes de reunir, em simultâneo, o elogia da crítica e do grande público (é até referir, para além de Sam the Kid, mais algum nome). Capicua é-o: não só deu o concerto com maior público no festival (e que mais reacções do público conseguiu gerar, apesar das queixas que ocasionalmente enunciou), como deu um dos melhores concertos deste primeiro dia. Este fenómeno de culto não é desproporcionado: e isso vê-se em disco como em concerto. A parte instrumental serviu sobretudo de base às palavras que Capicua atirava: e atirar é mesmo a palavra certa, porque elas são ditas de forma desafiante, afirmativa. «Isto é um concerto rap», afirmou Ana Matos a dada altura. E é-o de facto – veja-se o formato, só com DJ a acompanhar a rapper (e os convidados). Mas é nas palavras que Ana Matos se distingue: ferozes, sim, mas que abarcam tudo, da crítica social aos sonhos, da sua infância ao feminismo. As frases que Capicua nos atirou foram aquelas com que nos deixou, porque «Eles têm medo de que não tenhamos medo», dito daquela forma, estará ainda, certamente, a ecoar na cabeça de muitos dos que a ouviram hoje.
Com o palco Fusing ainda a fervilhar da intimidante performance de Capicua, era a vez de You Can’t Win Charlie Brown trocar o visceral da portuense pela sinestesia. Tarefa difícil perante uma performance anterior intimidante. Mas quem os procurou naquela fria noite encontrou o aconchego certo. Tal ninho que este conjunto lisboeta já nos habituou. Harmonias assonantes, guitarras progressivas, pianos sorumbáticos e baterias saltitantes que atraiu a quem por ali bebia um gin tónico curioso. O abanar da cabeça e o balancear do pé era notável em todos que, descontraidamente, viam o espetáculo. Mas, e talvez por isso You Can’t Win Charlie Brown repita constantemente elementos nos seus concertos, o espetáculo foi perfeitamente preparado para ser perfeito.
Para até fazer mexer a alma mais parada. Para quem já conhecia, After December e Be My World foram as que maior ovação provocou na plateia: tímidas cantorias e palmas. Mas os dois pontos altos do concerto que YCWCB, meticulosamente, preparou foram a já muito aclamada cover de Velvet Underground «Heroin», que vulnerabilizou a quem estranhava YCWCB antes, e o festival de luzes que acompanha tais canções cromáticas para um negrume de banda tão colorida. Apesar da pouca efusividade de quem assistia, à excepção do já referido cover, David Santos, que estaria a fazer o seu Bis neste primeiro dia (juntamente com o seu alter-ego Noiserv), aproveitou para agradecer a organização do Fusing pela aposta na música portuguesa.
Texto de Gonçalo Correia e Alexandre Malhado
Fotos de Alexandre Malhado