
O dia começou devagarinho, como aliás, nos outros dias. Alguns ainda dormiam, outros vinham dormir. Os que mais cedo se deitaram já se plantavam dentro da igreja, pra não perderem rigorosamente nada. Aqui, em Cem Soldos, parece abolido o termo “música alternativa” (e ainda bem), que reina em muitos outros festivais. Aqui, a música não pretende ser mais que isso, música. Aqui, além disso, ela só é boa. Aqui, ela transparece sensações, da alegria à dor. Aqui, ela conta histórias, histórias de amigos, de amor. Aqui, faz-se história.
Mara começou ligeira, acompanhada de um contrabaixo negro e pulsante. Mas logo viu que as ligeirezas de nada serviam e foi à carga com uma voz arrepiante, que até por vezes o microfone dispensou. E, após uma introdução de cortar a respiração, entraram em palco três outros músicos: guitarra portuguesa, outra clássica e uma bateria. Estava completo o fado. Ali, as paredes estremeciam enquanto sentíamos na pele a inquietude vocal e instrumental daquele fado bem cantado. Um tesourinho que soube bem descobrir: “É fadista!”
Alentejana de corpo e alma, acompanhada de uma banda exímia, fez-nos repensar em quem verdadeiramente merecia o estrelato no fado. Uma versão delirante de “Barco Negro”, onde até silenciou a banda para ouvir o fado vindo do público, que também o carregava na alma e tinha ganas de o soltar. Com influências vindas de toda a península Ibérica (tendo até o guitarrista vindo de Barcelona), houve uma proximidade risonha da qual até crianças desfrutaram para interagir. O primeiro concerto e já tinha sido o concerto do dia.

A seguir seriam os OrBlua a trazer de novo a tradição e a inová-la. O grupo algarvio pegou nos costumes portugueses, essencialmente daqueles próximos da Ria Formosa, e adaptou-os a uma quantidade de instrumentos que parecia infindável, usando desde loop stations às coisas mais antigas e orgânicas (como o próprio corpo).
Depois, os Tocá Rufar fizeram-se ouvir por toda a aldeia, partindo o som do palco Tarde ao Sol. Os rufos e tambores pareciam fazer estremecer paredes e corpos, quase até caírem. Ainda que não saiam da mesma fórmula há algum tempo, voltaram a impressionar com o poder de alguns elementos de tenra idade.
Torto trariam o pós-rock alternativo ao palco Eira, para os que queriam sair da zona de conforto do folclore. Malhas bem esgalhadas, cordas bem arranhadas e distorção que não se contentava com as fórmulas já feitas, numa energia que não parecia saída de só três rapazes e de uma guitarra, um baixo e uma bateria.
Norberto Lobo e João Lobo faziam encher o palco Giacometti por gente com vontade de experimentalismo e sombra. Uma bateria completamente esquizofrénica e jazzística em distante ligação com uma guitarra nervosa e pouco conformista. O projecto dos dois amigos não agradou a todos, havendo mais afluência perto do final, quando os dois instrumentos entraram em sintonia e optaram por um caminho mais delineado.
Foto: Carlos Manuel MartinsVoltávamos ao palco Lopes-Graça, onde tanto já tínhamos vivido nestes dias, para ouvir os Guta Naki. Cátia Pereira, Dinis Pires e Nuno Palma apresentavam-nos as canções do último disco, Perto Como e despediam-se dos palcos com um aviso triste de que aquele seria o último concerto da banda. O destaque para “Ainda Não Sei”, um slow curioso e viciante que teve um início atribulado, mandado parar pela vocalista: era o último concerto e não queriam cantar uma das canções mais conhecidas sem estar na perfeição. E foi assim que depois ficou. A despedida fez-se breve, já que o público quis mais um par de canções, que infelizmente não puderam ser mais.
De Noiserv, já sabíamos o que esperar. A sua delicadeza sonora sempre muito bem executada e encaixada, com os seus teclados de brincar e a sua nostalgia de outros tempos. Um concerto que teve casa cheia, no palco do cantinho que enche sempre à noite, o palco Giacometti. Ao longe, quase nem se fazia notar. David Santos passou sem fazer barulho, pé-ante-pé, eram horas de deitar.

Ricardo Ribeiro trouxe-nos o seu fado puro de Largo da Memória, um disco que se confirmou ter muita influência moura. Um bom início de noite comandado pelo fadista que canta a saudade desde os nove anos, sempre de pulmões e peito cheios.
Los Waves encheriam o palco Eira de público para ouvir rock psicadélico cheio de distorção. Com influências bem delineadas, o grupo que deixou para trás o seu passado mais pop fez furor e antecipava o final da noite com distorção e volume sem fim.
O último concerto a sério da noite estaria a cargo dos Aduf. Espectáculo conceptual, percursivo e calculado, assistimos a uma viagem sonora pelo Portugal rural, ajudados pelas flautas, gaitas e adufes gigantes, assim como pelas melodias serpenteantes e de fazer entrar em transe. A basca Maria Berasarte (que cantou na língua de Camões) fazia lembrar uma Teresa Salgueiro enquanto parte dos Madredeus, com uma voz cheia de negrume e mistério que nos fazia entrar em hipnose. Tradicionalismos em camadas ritmadas e contrastantes, todas muito bem construídas e com influências orientais.
A noite continuaria continuaria com a equipa Blacksea Não Maya DJs + DJ Maboku + DJ Marfox, que certamente gastaram as últimas energias dos mais rijos. Um dia menos forte que os anteriores mas que certamente será compensado pelo último, onde, entre muitas outras coisas boas, poderemos assistir ao furacão dos Ermo, à arrelia dos Memória de Peixe e ao legado de Sérgio Godinho.
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Fotos: Carlos Manuel Martins