
Em Cem Soldos, somos felizes. Em Cem Soldos, sentimo-nos bem. Mais um dia cheio de canções, alegria, bem-estar e satisfação. Novamente, há música para todos os públicos. Há sorrisos na cara de toda a gente e mesmo quem está sozinho encontra companhia, nem que seja apenas na boa onda que paira no ar. E precisamente com felicidade e em boa companhia começou o nosso segundo dia.
Fomos tentar perceber o alarido em volta de Reportório Osório, duo peculiar que apareceu de mansinho, este ano, mas que promete arrasar. Um acordeão e um vocalista com muita noção de musicalidade, linguagem e humor é o que basta para fazer o espectáculo performativo e super intimista e envolvente que é Reportório Osório. As letras, geniais. Histórias de casais irónicas, risonhas e bem planeadas, sobre amores e desamores, todas cantadas à boa maneira portuguesa e com uma métrica perfeita e decidida. As melodias, um acordeão irrequieto mas bem domado, a espalhar as suas notas pelas paredes da igreja, no palco d’A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria (MPAGDP), polvilhando-a de ritmo e originalidade. O público, ora rindo ora batendo palmas, sempre participando na brincadeira. Em bom português, fala-se da Susete, da retrete e da cozinha, de fetiches e gemidos e muitos outros detalhes da vida afectiva, sem medo de ferir susceptibilidades. E ferir foi coisa que não fizeram, já que rir é o melhor remédio e o público não parou de o fazer. Um misto de stand-up, declamação de lenga-lengas e cantar de canções. Um dos projectos portugueses mais interessantes e curiosos do momento, a ter a atenção merecida – lotação esgotada na igreja.
Foto: Carlos Manuel MartinsNo final, à porta da igreja, começávamos a ouvir os Marko i Blacky Orkestar. Deram música à rua principal no palco Tarde ao Sol, animando quem por ali passava e acabava por ficar. O seu alinhamento andou entre uma versão de “Kalašnjikov “, de Goran Bregovi? até “Grândola, Vila Morena” de Zeca Afonso e “Acordai!”, de Fernando Lopes-Graça e José Gomes Ferreira.
Seguiríamos depois para o palco Eira, onde já se ouviam as Anarchicks ao longe. O canto de raiva, o punk-rock feminino com F grande. Amadurecidas, agora até com uma canção em português com letra de intervenção, as meninas de Lisboa fizeram furor e pó levantar, apesar do calor, com o seu rock puro e duro e um público sedento de movida.

(Os dois parágrafos que se seguem serão apenas uma tentativa infrutífera de passar para palavras algo que só se mede em nós de garganta, pressão aquífera ocular e/ou arrepios.)
Entrávamos novamente nesse palco escondido e isolado que era o da MPAGDP, dentro da igreja, para assistir ao concerto dos Lavoisier. Ao sentarmo-nos, Roberto Afonso revelava que a letra do tema que haviam acabado de cantar era de Fernando Pessoa, do poema “Viajar”. De seguida, era “Eu Não Me Entendo”, de José Mário Branco, que se ouviria. Uma guitarra eléctrica delicada, sem distorções nem outras manhas, com as vozes a fazer pandã. Uma vocalista quase fadista, de seu nome Patrícia Relvas, apresentava-se expressiva, explosiva, com movimentos de braços e ancas descontrolados e sensuais. De garra e fúria cristalina, cheios de bipolaridades sonoras com fúria seguida de subtileza e plenitude harmoniosa e sensível. Palavras caras, adjectivos e outras coisas disparatadas que não fazem o mínimo de jus àquilo que se presenciou. Esta era apenas a primeira música que ouvíamos e já estávamos conquistados, de certezas feitas: seria este o concerto mais intenso a passar pelo festival (pelo menos, até agora). Tocou-se Tom Jobim e Vinicius De Moraes, em “Água de Beber”, mais uma composição cheia de camadas gritantes e de fazer pele de galinha.
O nome de fazia todo o sentido: dizia Antoine Lavoisier que, na natureza, nada se perde, nada se cria e tudo se transforma. A reciclagem de temas tradicionais da cultura portuguesa em versões modernas e aumentadas em emoção é o lema do duo de Odivelas que foi passar quatro anos a Berlim e aí entendeu a necessidade de se recuperar o passado e voltar a fazer “barulho”. A mestria vocal de Patrícia Relvas é algo digno de nota. Uma presença e vocalização como se nelas fluísse toda a a música e sentimento do mundo. Cantava “Maria Faia”, homenageando o eterno Zeca. Podíamos ficar para sempre naquela igreja, naquela oração ao passado e ao futuro, ao Portugal de ontem, de agora e de sempre. “Senhora do Almortão” recuperava a tradição da Beira Baixa num canto que mexia cá dentro, arrepiava e fazia lacrimejar. Um concerto intenso como raramente se presencia, que transpareceu uma melancolia intemporal e eterna sempre muito presente na identidade cultural portuguesa. Até as crianças deliravam (“Woooaaahhhh…”) e os velhotes da aldeia atentamente escutavam. O vira do Minho era transformado como tudo o resto, de uma forma incrível que tinha sempre presente aquele som muito tradicional e misterioso, feito de montanhas e de planícies, de serras e de rios, de Lusitanos e Mouros. Sentiam-se as notas no sangue, todos ligados por uma identidade comum. O sino da aldeia tocava por cima, anunciando “Acordai!”, que se ouvia pela segunda vez no festival. E como arrepiou e esfolou, esta canção, que por mais transformações que levasse nunca perdia a magia nem a ferocidade e urgência. Lopes-Graça voltava assim a ser relembrado, em conjunto com a letra de José Gomes Ferreira. Arriscamos dizer que, a par dos Ermo, os Lavoisier foram e são a coisa mais intensa a acontecer no momento e a passar por Cem Soldos este verão, naquilo que é uma das melhores transformações e modernizações do passado.

Gisela João, que seria a princesa da noite, foi mimada. Com o cancelamento dos Long Way To Alaska, a fadista beneficiou de um palco bem maior do que o previsto. De plateia cheia, o mimo não parou nem de um lado nem do outro. Aplausos, sorrisos, momentos de amena cavaqueira e improviso não planeado graças a uma corda partida viveram-se por todo o concerto. A voz de forte presença ouviu-se quase até Tomar, com o resto dos palcos e do festival em silêncio absoluto: estava-se a cantar o fado. Estávamos, e ela, de coração cheio. Com homenagens aos seus maiores ídolos, desde a senhora dona Beatriz da Conceição a Carlos Paredes, o concerto incluiu uma versão modernizada da “Casa da Mariquinhas”, escrita por Ana Matos (Capicua), a pedido de Gisela João. Viras e malhões para animar a malta também não faltaram no concerto que fez parar o festival e atrasar o jantar.
Depois de outro concorrido concerto dos Brass Wires Orchestra, Mumford & Sons versão portuguesa (mas a cantar na mesma em inglês), Samuel Úria mostrou quem mandava ali. No pequeno palco Giacometti, apresentou-se sozinho. Cantautor de sangue, o co-fundador da Flor Caveira de novo provou porque é um dos artistas portugueses contemporâneos essenciais. Do blues ao folk, da guitarra ao banjo, temas desde o início da carreira até O Grande Medo do Pequeno Mundo, do ano passado. Optou por regressar às origens e fazer um concerto a solo, com uma afluência tão grande que, mesmo sendo ao ar livre, impediu grande parte das pessoas de o verem e ouvirem, tendo muitos ficado pelo ecrã e colunas colocados no meio do recinto. A solo, sem instrumentalizações nem coros, Úria voltou a brilhar – e não se esperava menos que isso. Um concerto mais intimista, na mesma situação meteorológica de JP Simões: o frio, o encolhimento, o ombro amigo. E sempre o convívio e a partilha geral entre o artista e o público. Só foi pena o palco não ser maior, porque a vontade de ouvir cantar era grande.
Foto: Carlos Manuel MartinsCapicua viria a seguir. Esta sim, a rainha da noite, com o concerto mais lotado da jornada. Servida do maior palco do festival, o palco Eira, apresentou canções do novo Sereia Louca e de trabalhos mais antigos. No palco com M7, D-One e ainda o ilustrador do último disco a desenhar em tempo real no ecrã. Vivia-se o bom ambiente e disposição por todo o lado, com a palavra “bom” a reinar no Bons Sons. A chefe do rap militante trouxe ainda Mistah Isaac para a acompanhar em três canções acústicas: “Vinho Velho”, “Luas” e “Casa no Campo”. O concerto terminaria em grande com “Pedras da Calçada”, já depois do single “Vayorken”, enquanto uma bandeira da UE era desenhada no ecrã, com uma mão que lhe atirava uma pedra, em protesto. A caminho do palco Lopes-Graça, a afluência aos bastidores era grande: todos queriam tirar uma fotografia e dar dois dedos de conversa com Capicua.
Os Gaiteiros de Lisboa preencheram o lugar dos Galandum Galundaina na segunda noite. Trovas “roubadas” ao Portugal rural, do Minho ao Alentejo, com uma força enorme saída das percussões explosivas que nos faziam remontar a tempos medievais, a reis, rainhas, cavaleiros e batalhas, mas com permanentes alusões ao presente e aos tempos difíceis que vivemos. Foi grande a herança partilhada com o público e a emoção de quem ouvia ao recebê-la, já que estávamos perante um dos grupos tradicionais portugueses mais importantes e influentes das últimas décadas.
O final da noite ficou a cargo de Moullinex, que fez um DJ set para os mais sedentos de música de dança. Não saindo muito do mesmo registo, a maioria do público regressou para a tenda, para repor as baterias para o terceiro e penúltimo dia.
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