
Talvez por ser sábado, talvez pelos nomes deste último dia, talvez apenas porque sim. Este dia que encerra a segunda edição do Fusing Culture Experience tinha mais do que motivos para ser visitado. E assim foi: o dia mais visitado do festival, num dia quente para a pele e para os ouvidos.
Num final de tarde veranil, Orlando Santo actou no palco Experience neste último dia de festival. Numa interessante mixórdia de Soul e Reggae, a conhecida voz que participou em Since You’ve Gone dos Orelha Negra, soube aproveitar o ambiente descontraído vivido fazendo um espetáculo apropriado para quem precisava de se preparar para o que viria ser uma noite inesquecível. A meio do concerto, mesmo tempo, estava a acontecer perto do Cooking Lounge um Wine Tasting, que só coloriu ainda mais a já incrível voz de Orlando Santos. A postura do mesmo nasceu de uma fusão de Ben Harper, Damien Rice e Bob Marley, dedilhados cantados, abençoados por Jah e cheios de ritmo ideais para um sunset na Foz.
Fachada foi o primeiro nome a pisar o palco principal este sábado, o último dos três dias que durou o Fusing. Num alinhamento que percorreu extensivamente o seu último disco (as seis canções que o compõem foram todas elas tocadas), e ao qual acrescentou temas anteriores (“Quem quer fumar com o B Fachada”, “Não pratico habilidades” – apresentada pelo próprio como «as outras são uma merda, mas esta é boa», “Zé” – cantada sem parte instrumental, pela ausência da guitarra -, “Afro-Xula”, “É normal” e “Tozé”).
Munido de um sintetizador, uma caixa de ritmos e um sampler, Fachada deu um concerto próprio da sua música: não convencional e singular, com os jogos de palavras e a métrica das canções a serem pensadas ao pormenor para que o som soasse coeso e com um encadeamento que fique no ouvido.
Muito bem-disposto e conversador, Fachada deu aos seus fiéis e entusiásticos seguidores (viram-se cartazes, ouviram-se muitas palmas, ouviram-se elogios e incitações gritados numa participação intensa da plateia) aquilo que eles mais queriam ver: as suas canções aparentamente tão trauteáveis e ligeiras, mas com o seu dialecto próprio que desafia (e de que maneira) a teoria literária na interpretação dos versos. O Fachadês, onde ainda assim se fazem notar mudanças face ao Passado (ouvimos “Zé!” e “Tozé”, lançadas em 2009 e 2010, e é notório que a sua lírica à data era mais decifrável sem perder a mordacidade irónica que ainda hoje mantém), continua a ser um marco da sua música. A oralidade permanece como ponto-chave mas há sentidos nos jogos de palavras que são muito pouco inocentes (e alguns deles muito bem conseguidos). Fachada, este sábado a funcionar enquanto«One man band, the legendary», como se auto-intitulou humoradamente numa referência à presença de Legendary Tigerman no evento, está de volta. E há que admitir que o seu mundo musical, seja-se mais ou menos fã, é absolutamente único.
A noite já estava maturada após um bem-disposto Fachada e, para quem pretendia ver Dead Combo, esta seria a altura ideal para uma refeição. Mas a decisão de ir jantar complicou-se pelo som que berrava do palco Experience com astucia sinestésica: os When The Angels Breathe estavam a tocar. O post rock pessoal e intimista de David Francisco, baixista da banda de post punk Uni_form, estava a respirar pela primeira vez em Live Act naquele dia de festival e mostrou porque é que WTAB devem ser siglas a reter.
Apenas com um triângulo a incandescer o palco, as canções do álbum de estreia The Wolf estavam a reluzir uma agressividade passiva, que induziam a um estado ideal para o fechar de olhos, balançar de corpos e viagem nas melodias de climas frios e nocturnos como Wolf Eat Shark e Dark Wolf. Foram poucas mas intensas as tonalidades quentes presentes, que foram manifestadas em Madalena, canção paterna dedicada «a alguém muito especial» – disse o David. Apesar de ser um projecto solo, o Frontman David não estava nada sozinho. Excelentes músicos ajudaram-no a materializar este sonho de uma noite de Verão. Com algum destaque no baterista João Pedro dos Murdering Tripping Blues, que foi implacável na difícil tarefa de tornar uma bateria programada em orgânica, e no quarteto de cordas Opus Diabolicum, que fez canções como Metamorphosis transpirarem de melancolia. Apesar de muitas emoções, faltou apenas um toque de dinamismo e agressividade necessários em climas de festival que não se encontra em discos.
When The Angels Breathe deu vida a um alinhamento fraco do palco Experience, com um post rock que merecia uma estreia com mais plateia e numa sala mais intimista. Apesar do projecto ainda precisar de crescer em Live Act, os WTAB foram a surpresa do Palco Experience do terceiro dia. Eram poucos os que ali assistiam ao concerto, mas para quem optou enganar a fome com a música de David Francisco não se arrependeu.
Os Dead Combo foram o segundo nome a actuar no palco principal, depois de Fachada. E deram mais um dos grandes concertos neste festival. A dupla constituída por Tó Trips e Pedro V. Gonçalves trouxe à Figueira a sua música hipnótica, que tanto é blues americano desvairado como fado português – e que às vezes chega a transportar o público a um tempo e um classicismo que não é de hoje mas do Passado (ou que, pelo menos, não se encontra nos sítios mais óbvios).
Esta fusão na bateria e nas guitarras do duo resulta num concerto sempre surpreendente, coerente do início ao fim mas que não é nem repetitivo nem nunca chega a cansar. Os Dead Combo já cá andam há muitos anos e são um dos nomes essenciais no surgimento de uma música portuguesa arrojada, que não teme arriscar e que crê absolutamente na capacidade de levar as pessoas a visitar outros locais na sua mente. Este sábado fizeram-no de novo no Fusing, e quem entrou na viagem (ou)viu coisas belíssimas.
Abordando bastante o último disco, «A Bunch of Meninos», e acrescentando-lhes canções da sua (já relativamente extensa) discografia, a surpresa do alinhamento residiu sobretudo em «Temptation», um original de Tom Waits (nome que a banda já referiu por várias vezes admirar) tocado esta noite por Tó Trips e Pedro V. Gonçalves.
Legendary Tigerman protagonizou aquele que foi talvez o concerto mais conseguido em toda esta segunda edição do Fusing Culture Experience (e tantos houve de qualidade que esse facto põe-no num patamar muito alto). Mas tudo o que aconteceu no concerto (e aconteceu muita coisa) legítima, pelo menos, a opinião. Ouvimos várias canções do grande disco que lançou em 2014, True – três delas a sublime Gone, a libertadora “Wild Beast” e a excelente “Twenty First Century Rock ‘n Roll”, que originou um monento de grande comunhão entre Paulo Furtado e público, com a expressão em causa a ser berrada em plenos pulmões pelo público e por Paulo Furtado, à vez, durante muito tempo) – e outras mais antigas (Naked blues, o cover This boots are nade for walking, etc), o Homem Tigre trouxe consigo um baterista e um saxofonista que acompanharam as suas canções inspiradas na tradição americana (do blues ao punk do País do Rock ‘n Roll). À comunhão favoreceu o pedido que o músico fez, a dado momento, para se abrir o fosso dos fotógrafos que o separava do público (já Capicua havia referido “vocês estão tão longe” no primeiro dia). E o convite para a subida ao palco a duas pessoas da plateia que quisessem ir para la dançar, assim como a chamada dos Dead Combo (“um dos melhores agrupamentos deste Pais) a juntarem-se a ele num cover de Teenage Kicks dos Undertones. E foi assim que Tigerman deu um concerto épico: víamos a sua presença em palco, junto ao público, a exorcizar demonios pela guitarra e voz distorcida (novamente, bem acompanhado pela bateria e pelo saxofone sob efeitos eléctricos), e só recordávamos as palavras de John Lennon sobre a intemporalidade e a imortalidade do rock. Paulo Furtado é um dos que mais consistntemente o tem mantido vivo por cá, e o espírito desafiador e contra-cultural do género está cada vez mais presente (e cada vez melhor recriado) na música deste Homem tigre.
Coube aos PAUS encerrarem o palco principal desta segunda edição do Fusing Culture Experience e manter quentes as pessoas que haviam acabado de assistir (e participar) num concerto tão intenso quanto o de Legendary Tigerman. E os PAUS souberam aproveitar isso para continuar a festa: Quim Albergaria agradeceu a Paulo Furtado pela abertura do fosso para os fotógrafos e avisou desde logo que não começaria o concerto sem este aberto (“Antes da fotografia existia a música, antes da internet existia a música e antes da música existíamos nos”).
Com um concerto que teve várias canções do último disco mas também outras menos recentes, do primeiro EP do grupo, os PAUS voltaram a mostrar-se uma das grandes bandas rock portugueses, trazendo a sua música que, sendo física e visceral, convida à dança (a dada altura, o baterista Hélio Morais pediu para ver toda a gente a dançar e acrescentou “com um sapato na mão”, por também ele não o ter calçado).
Estes repetentes do festival (visto que já lá haviam estado o ano passado) ofereceram muita intensidade sônica, com as duas baterias e as guitarras de Makoto e Fábio Jevelim a oferecerem hipnotismo, força e tribalismo a uma música tão singular quanto a deles. Já os havíamos visto no Alive, e desta feita os PAUS voltaram a demonstrar que ao vivo as suas canções funcionam ainda maior que em estúdio. Não há Verão nem Governo, como a certa altura sugeriu Quim Albergaria, mas a música dos PAUS serve de combate e derrotou, pelo menos, o frio que se fazia sentir na Figueira da Foz.
Assim termina mais um Fusing Culture Experience. O que ficou? Uma pequena lágrima de orgulho nacional. Desde os nossos aclamados artistas até à sopa cremosa de cenoura ao jantar, às nossas praias, às danças, aos nosso vinhos. Sim, a cultura portuguesa ganhou. Mas acima de tudo, a certeza de que a música em Portugal sabe ser portuguesa, seja em que idioma for cantado.
Texto de Gonçalo Correia e Alexandre Malhado
Fotos de Alexandre Malhado
“Orlando Santo abre o palco Experience neste último dia de festival” ? Era capaz de jurar que ouvi/vi bandas antes.