
As subtilezas orgânicas e progressivas dos Nome Comum não podiam ser melhor maneira de despertar neste último dia. Uma orquestra de pormenores e texturas metálicas vindas de todos os cantos do mundo navegava pelo escuro do auditório. Em “Alentejar” passávamos das texturas metálicas para o adufe tocado com uma baqueta, acompanhados por um piano e guitarra sorridentes que pareciam correr num qualquer prado alentejano, como diz o nome da canção. O cavaquinho envergava por um quase corridinho que embalava e chamava as palmas e a aprovação definitiva do público. Depois de “Alentejar”, “Acordo Tarde”, que substituía a correria alegre por uma bossa nova preocupada em chegar a horas, que introduzia mais ritmos bem orquestrados e agradáveis e que nos faziam querer ficar. A percussão certa e dedicada de Nuno Mourão incluía um arco de violino que passava nos pratos, sinos e outros objectos curiosos, viciantes e irrequietos fazendo-nos esquecer tudo o resto: era o “Ângulo Morto”. nome comum, sopa de pedra, ermo, campaniça trio, presença das formigas,memória de peixe,antónio chainho, we trust, amélia muge, first breath after coma
“Sereia no topo do bolo” era isso mesmo. Criatividade instrumental levada ao máximo, com um tubo de ar e a manivela de um rádio a fazerem de fundo e a tecer um fundo sonoro onde todos os pormenores importavam e se faziam ouvir, por mais suaves e baixinhos que fossem. “De coração e raça”, de Sérgio Godinho, uma influência bem presente ao longo das canções dos irmãos Bernardo e Madalena Palmeirim (acompanhados por Nuno Mourão e Gonçalo Castro) , seguida por “Quem Não É Antes Fosse”, uma cantiga cheia de garra e uma viagem de camelo pelas influências e inspirações da banda lisboeta. “Cuco”, o tema que dá nome ao disco, foi delirante e cheio de métrica. Viriam a seguir “Dá-me”, com um trecho quase psicadélico e “Anão Gordo”, “uma canção para acabar com o ânimo mais em cima” que contava de novo com delírio, fantasia e uma instrumentalização hábil e cheia (até um trompete com uma luva na ponta foi tocado).

Com pouca vontade de sair dali, chegámos ao palco Tarde ao Sol, onde um grupo de nove moças cantava ?a cappella? e às vezes a fazer lembrar os coros do Grupo de Acção Cultural: eram as Sopa de Pedra. Com uma harmonia e polifonia certa e bela, cantada à hora em que o calor apertava, os contornos das casas das redondezas foram povoadas pelo público que procurava uma sombra mas não impedisse de escutar as trovas rurais do continente, dos Açores (“Os Bravos”) e até de Castela (“A L’Orilha Del Rio”). Cristalino, o grupo cantava e encantava o público – e até um cão – com os seus ritmos celestiais e a sua manta vocal esvoaçante. Antes de partirmos para os Ermo, ainda pudemos ouvir “Asa, Asa”, uma declaração de amor a Caetano Veloso cheia de swing. A certa altura, cantavam “pássaro voou” e um grupo de andorinhas sobrevoou o grupo. Canto terra-a-terra, em comunhão com todos os seres.
Os Ermo começavam à hora certa, com a sombra a passar do chão para o som saído das colunas do palco Giacometti, com a negrura do duo bracarense que é tudo menos luz. E que boa é essa escuridão. De maneira muito subtil mas ao mesmo tempo neurótica, executavam as suas canções de raiva e lamento. António Costa é um monstro de sensações corporais e movimentos em palco como raramente se vê, que vive como poucos aquilo que faz. “Amor vezes quatro”, “Porquê” e canções do futuro EP (Amor vezes quatro, a sair em Outubro) variavam entre a crítica política e social à crítica sensível à pedofilia na Igreja. “Pangloss” terminava o concerto em beleza, com um hino de protesto contra o conformismo e o engano.

Terminado o concerto de um dos projectos mais intensos do Portugal contemporâneo, fomos para a igreja (ou palco MPAGDP). Os Campaniça Trio levaram para dentro da capela de Cem Soldos uma autêntica liturgia comunitária, que a música tradicional e o cante alentejano permitem: o público cantou, pediu temas concretos, riu com o humor dos músicos, entrou no ritmo da viola campaniça e do cante, e foi adiando por mais três quartos de hora o fim de um concerto previsto para sessenta minutos.
No final, rumámos ao largo do palco Lopes-Graça. Lá, vivia-se um dos momentos altos do festival. Um grupo grande cantava serenatas de amor ao festival, de guitarras e kazoos na mão e outro, ao lado, saltava à corda alternadamente. A certo ponto, entrou em cena um petiz dos seus 3 anos que não olhou a meios para impressionar toda a gente com as suas danças ao som d’A Presença das Formigas, prontamente imitadas por um grupo que o foi rodeando, numa brincadeira que se prolongou por um quarto de hora. Quem tinha vergonha de dançar com o “Gui” filmava e chamava os amigos para assistirem. O Bons Sons assumia-se assim como o festival com um dos melhores ambientes de todos. A boa disposição e a partilha reinaram no último dia que se fez de despedidas.

Falando em despedidas, fomos ver o pôr-do-sol ao palco Eira, ao som de Memória de Peixe, para assistir a uma chuva de notas num pós-rock calculado, a puxar para o math rock. Loops infindáveis e uma guitarra bem comandada fizeram remexer os últimos pós no recinto, que encheu para ver o duo instrumental. Um final também a puxar para o psicadélico, alinhado com o sol que começava a pôr-se, preguiçoso, despedindo-se do festival com um “até pró ano” sorridente e luminoso, qual episódio dos Teletubbies.
Pela hora de jantar, ouvia-se ao longe António Chainho, mestre da guitarra portuguesa que trouxe Filipa Pais e Ana Vieira, vozes com quem tem trabalhado e que estarão novamente presentes no seu próximo disco, para o acompanhar. Dispensámos os We Trust, que tocaram com a Banda Filarmónica Gualdim Pais, de Tomar, e provocaram uma das maiores recepções do público do festival naquele palco, o palco Eira. Amélia Muge fez um concerto bem recebido à base de canto, com influências entre a música popular portuguesa e a música africana, com um toque de piano e modernidade.
Foto: Carlos Manuel MartinsQuase quase a chegar ao fim, entraria no palco Lopes-Graça o já mítico Sérgio Godinho, que nos fez bater o coração por razões boas e más. Com um concerto em torno do conceito “Liberdade” (a palavra estava escrita no palco, em letras gigantes) e canções sempre a condizer com esse tema, Sérgio voltou a não desiludir, num concerto cheio de competência, com canções que foram desde 1971 (Os Sobreviventes) a 2013 (Caríssimas Canções). Ouvimos “Lisboa Que Amanhece”, “Vampiros” (de Zeca Afonso), “Com Um Brilhozinho Nos Olhos” e “Maçã Com Bicho (Acho Eu Da Praxe)”, até que Sérgio Godinho deixou o público sem respiração: tinha caído do palco para o fosso e o concerto parou.
Depois de alguns minutos sem se saber o que lhe acontecera, um responsável veio comunicar que tudo estava bem e que, em princípio, o concerto seria retomado. E assim foi, em jeito de brincadeira: “Isto foi uma première. Nunca tinha acontecido, tinha de ser aqui!” e o público descomprimia com boa disposição, acolhendo o regresso em força de um dos cantautores mais inteligentes e aclamados do pré e pós-25 de Abril. A prova definitiva de que os anos não o afectaram. Ainda durante a segunda metade do concerto, entrou em palco António Serginho – que já tinha tocado mais cedo com as Sopa de Pedra e, no primeiro dia, com Peixe -, para tocar castanholas. O concerto chegava ao fim com “Que Força É Essa”, “A Democracia (Aforismos)” e “Primeiro Dia” em jeito de passagem de testemunho para as próximas edições do festival e um coro de milhares em celebração da música que tinha sido ouvida ao longo dos quatro dias. Emocionante. Sérgio Godinho voltaria ainda para mais uma canção, “A Noite Passada” e um trecho de “Liberdade”, com um público mais sonante que nunca.
Foto: Carlos Manuel MartinsA terminar mesmo (sem contar com os DJs, dispensáveis e deslocados num festival como este), seriam os First Breath After Coma. Banda nascida em Leiria há cerca de dois anos, não deixaram de impressionar com o seu pós-rock emocionante e contagiante. O concerto incluiu ainda uma versão épica de “Wait”, dos M83, que provou que a banda tem asas para voar. O pau-de-chuva e o arco de violino à la Sigur Rós entravam em palco para “Dead Men Tell No Tales” e o destaque viria, claro, em “The Escape”. No final, tal como em Capicua, a afluência aos bastidores – para levar nos telemóveis uma última recordação do festival – era grande.
Arriscamos dizer que o Bons Sons é o melhor festival português, de qualquer estação. Um ambiente e bem-estar irreproduzível e uma qualidade musical média superior a todos os outros, tudo por um preço quase simbólico. Um festival que abre horizontes para tudo aquilo que de melhor se faz em Portugal (e que infelizmente as rádios e televisões praticamente ignoram), quase deitando por terra a vontade de ir ouvir coisas de outros lados – pelo menos durante um tempo. Um festival que nos faz pensar no que andamos nós e os meios de comunicação a fazer com a cultura portuguesa que é, como se provou em mais esta edição, muita rica e diversificada.
Obrigado, Cem Soldos, e até 2016!
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Fotos: Carlos Manuel Martins