Chegámos a Cem Soldos. Depois de uma aterragem demorada e atribulada, estávamos enfim prontos para ver, ouvir e sentir estes Bons Sons dos quais tanto se têm falado nos últimos anos – e com mérito, adiantamos já.
A caminho do primeiro concerto que íamos ver, éramos surpreendidos pelas mais variadas bugigangas que se vendiam pela Feira de Marroquinarias, nas banquinhas de comércio local, em conjunto com as tascas e restaurantes muito especiais espalhados pelo recinto. Com uma aldeia inteira fechada para albergar o festival, o espaço é de convívio, alegria e comunhão. Vive-se, aqui, quatro dias de boa música e boas vibrações em abundância, onde não faltam estilos musicais, coisas pra fazer e pessoas pra conhecer.
Finalmente em frente à igreja de Cem Soldos, no palco Tarde ao Sol, cantava Ana Cláudia. De voz suave e delicada, trazia-nos uma pop ligeira com laivos de electrónica e jazz, a fazer lembrar um James Blake versão feminina mas menos experimental e mais directo. Ecos de coros, sintetizadores e um contrabaixo iniciaram assim o nosso festival, numa tarde cujo fim se avizinhava, com o sino a tocar as horas por cima da música.
Foto: Carlos Manuel MartinsFomos então dar uma volta pelo recinto, conhecer e viver a aldeia – um dos lemas do festival. No caminho, éramos surpreendidos por meninas e meninos que distribuíam tostas com atum, assim como pela heterogeneidade que brotava de cada canto e recanto das ruas, com pessoas de todo o lado e de todas as idades em completa harmonia, num dos poucos festivais com uma dimensão verdadeiramente humana.
A explorar o local, acabámos por chegar ao palco Giacometti, num dos poucos largos da aldeia, do outro lado da rua do palco Tarde ao Sol. Assistíamos ao soundcheck de Peixe, nome artístico de Pedro Cardoso – um dos fundadores dos Ornatos Violeta – num início relaxado do festival, que via os seus visitantes chegar aos poucos.
O dia só começou verdadeiramente no palco Tarde ao Sol, às 18 horas. A ser o primeiro concerto com verdadeira afluência, os Ciclo Preparatório foram paradoxais. Melodias doces cheias de garra e muitos gritos das meninas da fila da frente. O largo da igreja dançou, delirou e cantou bem alto, num concerto bem alinhado com a tarde. Ouviu-se “Lena Del Rey”, “Casa da Lamarosa”, “A Volta ao Mundo com a Lena d’Água” e outras canções retiradas do disco de estreia As Viúvas Não Temem A Morte, editado pela Optimus (agora Nos) Discos no ano passado, assim como algumas novas ainda por lançar. Perto do final, como tem vindo a ser hábito, a banda tocou “Por Quem Não Esqueci”, fazendo a ponte para uma das suas inspirações óbvias, os Sétima Legião. Rock envolto em saudade e nostalgia – seria um bonito final de tarde. No fim propriamente dito, que teve direito a encore, já se ouvia Peixe no palco Giacometti, na outra ponta da rua.
Foto: Carlos Manuel MartinsDe guitarra ao colo, uniu-se ao instrumento como um só, num concerto que começou por se ver sentado, até começar a chegar mais gente. Guitarra acústica introspectiva e bem portuguesinha, com lembranças dos tempos de Ornatos a soar por boa parte delas. Mais à frente, juntar-se-iam os amigos de estrada Nico Tricot e António Serginho para o ajudar em temas do último Apneia.
E porque uma das qualidades do Bons Sons é ser ecléctico, decidimos ir cuscar Joana Gama – que já tinha tocado às 15 horas – ao Auditório. Mais uma voltinha à aldeia pelas ruas e ruelas, pelos becos sem saída e de volta pra trás, passando por instalações de arte contemporânea, arte urbana nas paredes e um grupo de dez pessoas unidas por uma só camisola – que parecia querer imitar a mascote do festival, a Tixa. Já à porta Auditório, seríamos acompanhados por um voluntário munido de uma lanterna que nos guiou pelo escuro. Chegados à sala em si, nem reparámos que lá estávamos. Uma escuridão total e um silêncio perpétuo inundavam a sala, quando o piano ora esquizofrénico ora ligeiro de Gama se fez ouvir. À medida que as nossas pupilas se abriam para melhor ver as virtuosas mãos da pianista, também os nossos tímpanos ganhavam mais sensibilidade, agora aliviados das colunas dos palcos ao ar livre. Música contemporânea para os festivaleiros mais eruditos, notas musicais frenéticas e suaves, com choques e dissonâncias de se engolir a seco e de se tirar o chapéu. “Bru-tal! Bru-tal”, ouviu-se no fim. Do programa constaram dezanove peças da obra “Viagens na Minha Terra”, de Fernando Lopes-Graça.
Depois do jantar e de uma Azáfama à qual não pudemos assistir mais que cinco minutos – tocavam os Capitão Capitão – seria a vez de JP Simões. Cantautor português já com alguma bagagem e uma guitarra a fazer de motor, Simões começou por rejeitar portugalidades e cantar “Hey Georgie”, brincando com o facto de ter começado a cantar em inglês num festival que celebra a cultura portuguesa. Rapidamente passou ao português, com uma presença faladora e simpática para a hora de jantar. O cheiro a grelhados pairava sobre a aldeia e a verdadeira azáfama era feita pelos transeuntes que de um lado para o outro andavam, à procura dos melhores petiscos e das melhores bebidas. Os que viam o concerto sentados começavam a encolher-se e a encostar-se ao ombro amigo ou namorado, ao som da voz rouca e terna que saía das colunas, tentando combater o friozinho que se começava a sentir.
Foto: Carlos Manuel MartinsA Noite Prémios Megafone entrava em cena como o destaque da noite e no palco Lopes-Graça ficou concentrada a maior parte da audiência durante umas boas cinco horas. A Associação Megafone 5, que tem como missão celebrar a cultura portuguesa e o legado de João Aguardela, trouxe os três nomeados ao prémio deste ano, assim como o vencedor do ano passado – mas já lá vamos. Primeiro, Nó D’Alma presenteou-nos com a sua guitarra portuguesa e música tradicional misturada com electrónica, trazendo a palco um futuro com saudades do passado. De seguida, chegaria ao palco Omiri, projecto a solo de Vasco Casais, que fez um dos concertos da noite. Gaita de foles, cavaquinho, um computador e toda uma panóplia de instrumentos (nyckelharpa e bouzouki!) faziam a música ondulante e a lembrar música árabe que ora passava de trovas quase medievais a electrónica e rock que nunca esquecia as sonoridades rurais e tradicionais. Batidas fortes e samples com vídeo cheios de Portugal e de portugueses, que puseram o largo principal de Cem Soldos num frenesim inegável. Logo de seguida entravam em palco os Charanga. A organização prometia um “partir da loiça toda”, que começou com uma revisitação da tradicional “Mira-me Miguel”, tema também interpretado pela Brigada Vítor Jara (que também já passou pelo festival) e que incluiu um bocadinho de “É P’rá Amanhã…”, de António Variações – um dos pioneiros desta vontade de recuperar a tradição e fazê-la moderna. Novamente, inúmeros instrumentos enchiam o palco de sons. Desta vez: violino, gaita, percussão e um computador na transformação da velha tradição e criação de uma nova. Sempre com nostalgia presente, os grupos da Noite Prémios Megafone não deixaram pra trás a saudade nem tudo aquilo que faz portugueses os portugueses. O violino soou a música medieval e quase taberneira, teleportando-nos para um castelo qualquer. O festival mais português de todos – e o melhor.

O folclore não parava e seriam então os Charanga a levar o prémio para casa – que incluía uma colectânea única em vinil de tesouros da tradição do país. Em celebração, era a vez dos vencedores Galandum Galundaina, estes verdadeiramente tradicionais. Trouxeram-nos os ritmos e cantares importados directamente de Miranda do Douro, através de instrumentos antigos recuperados e outros mais comuns. Lenga-lengas envoltas em tambores, adufes (que em Miranda são chamados de “pandeiro”), flautas, cavaquinhos, castanholas, pífaros, um um realejo e uma sanfona que deram o mote a comboios humanos, a jogos de roda feitos cantiga popular e com certeza muitas danças. “E viva o pandeiro!”, diriam eles antes de “Nabos”.
Depois, o rock. Ah, o rock. Esse esperou, esperou…até que alguém finalmente lhe pegou. E que bem que ficou. O rock foi feito para os TV Rural o tocarem e os TV Rural foram feitos para o tocar. Visceral, directo e cru (ouça-se “Morde-me”). Explosivo e sempre sem esquecer as suas raízes da aldeia, o canto e gritos do palco Eira estariam a cargo de David Jacinto, que era acompanhado por uma equipa feroz – João Pinheiro (Diabo na Cruz) na bateria, David Santos no baixo e Gonçalo Ferreira na guitarra. Infelizmente, seriam apenas cinco músicas: o concerto já ia atrasado e nesta segunda Azáfama ainda faltavam duas bandas (O Martim e Hombres Com Hambre).
Voltados da curta mas excelente prestação dos TV Rural, a festa ainda se fazia pelo palco Lopes-Graça, provocando uma menor afluência ao palco Eira. Antes dos DJs que fechariam a primeira noite, Galandum Galundaina continuavam a tocar aquelas que eram sempre as suas últimas músicas, já que nem eles nem o público queriam que a noite acabasse: “Eu por mim ficava aqui mais quinze dias”. O espectáculo chegava ao fim (ou achávamos nós, visto que vinha sempre mais uma canção) com “Senhor Galandum”, moda que deu o nome ao grupo mirandês. E que moda essa. O público bailou, como mandava o “Fraile Cornudo”, sob a lua quase cheia, num culto à herança gigante mas muitas vezes esquecida que é o património musical português dos séculos passados. E não poderia haver melhor espaço que o Bons Sons para se homenagear Portugal e as suas raízes folclóricas. Ei-la, a música portuguesa, mais forte que nunca e com o velho a saber a novo.
[wzslider info=”true”] Fotos: Carlos Manuel Martins