
A probabilidade de assistir a um concerto de Alceu Valença em Portugal é bastante reduzida. O músico de São Bento do Una, Pernambuco, não tem por cá o nível de popularidade de muitos dos monstros sagrados da MPB, o que torna pouco provável a sua presença em terras lusas, apesar de ter estado em Lisboa há dois anos atrás, se não me falha a memória. De qualquer maneira, Alceu Valença está a milhas e milhas de distância do coração dos portugueses, se comparado a nomes como os de Caetano Veloso, Milton Nascimento, Chico Buarque ou Gilberto Gil, apenas para mencionar alguns artistas masculinos que, sendo estrelas maiores do firmamento musical do país irmão, andam na estrada há já várias décadas, facto que também acontece com Alceu. No entanto, e apesar do relativo desconhecimento a que está votado entre nós o criador de «Anunciação», a verdade é que o seu regresso à nossa capital (esteve no Porto na véspera) teve direito a uma sala muito bem composta, quase cheia até. O Tivoli BBVA soube receber, com a dignidade devida, o grande Alceu Valença num espetáculo comemorativo dos seus 40 anos de carreira, e que por isso serviu para que o músico pudesse revisitar muitos dos seus maiores sucessos. O formato do show talvez tenha surpreendido os mais desatentos, mesmo que nos anúncios de promoção do evento se pudesse ler que Alceu Valença vinha acompanhado por uma orquestra, algo verdadeiramente inédito no seu já longo percurso musical. O show encontra-se registado no duplo formato habitual (cd e dvd), embora havendo apenas edição portuguesa do primeiro. Eu, felizmente, já conhecia o registo há algum tempo, uma vez que o disco é de 2014, o que me permitiu ter noção prévia do que a noite de ontem me podia trazer.

O concerto começou com um registo orquestral de grande fôlego, e nos primeiros largos minutos do espetáculo, o palco esteve apenas entregue à Orquestra Ouro Preto. Uma das características mais interessantes deste concerto prende-se com a substantiva carga cultural que o mesmo encerra. A riqueza das sonoridades nordestinas encontra-se aqui vertida para um registo de rara beleza e sensibilidade. É nesse plano que a voz forte e agreste (mas também doce e suave ao mesmo tempo) de Alceu Valença se casa perfeitamente com os arranjos do maestro Rodrigo Toffolo. Quando Alceu entra em palco, todos sabemos que vem para acrescentar algo de ainda mais relevante ao que até então tínhamos assistido. É, sem margem para dúvidas, um artista de grande carisma e enorme tamanho. Canta apenas quatro canções, para logo desaparecer do palco, pondo-se o destaque, uma vez mais, nos vinte homens e mulheres que fazem parte da Orquestra Ouro Preto. Em seguida, somos de novo surpreendidos pelos fantásticos arranjos de algumas canções de Alceu Valença, até que o show o recebe de novo para não mais o largar até ao seu fim. O repertório do músico é vasto e rico, e foi muito bom viajar nele e no seu particular sotaque sonoro. Mais um punhado de sucessos ecoam pela sala, para delírio de um Tivoli BBVA cheio de público e de emoção. «La Belle de Jour», «Girassol», «Tropicana» e «Anunciação», assim de rajada, ficam para o fim. A noite estava quase completa. Houve ainda tempo para um encore, e para se ouvir dizer, da boca do próprio Alceu Valença, uma frase que sintetiza muito do que aconteceu na noite de ontem, em pleno palco: «Viva a cultura. Entretenimento eu acho chato.»

Uma nota final para dar os parabéns à produtora Ao Sul Do Mundo, pela coragem de trazer aos nossos palcos esta enorme comitiva de músicos. A ousadia compensa muitas vezes, e ontem provou-se que a qualidade deve ser o único caminho sério a seguir.
Alinhamento do show «Valencianas»:
* Abertura Valenciana (instrumental)
* Sino de Ouro
* Ladeiras
* Cavalo de Pau
* Coração Bobo
* Talismã (instrumental)
* Estação da Luz (instrumental)
* Porto da Saudade (instrumental)
* Acende a Luz (instrumental)
* Junho
* Sete Desejos
* La Belle de Jour / Girassol
* Tropicana
* Anunciação
Encore:
* Coração Bobo
* Tropicana
Fotos gentilmente cedidas por Nathalia Torres