
Há uns anos, mais precisamente há quase cinco, estou velho, fui vê-lo pela primeira vez à Culturgest e escrevi neste site quando ainda era blog que: «durante aquela hora e pouco senti o meu corpo entregue às probabilidades das coisas e é isso que se quer quando se entra numa sala de espectáculos ou uma sala de cinema, ou o que o valha, queremos deixar-nos ir e voar por cima de tudo o que para nós é memória e desejos de futuro e imaginarmos que aquele que toca está a tocar para ti. (…) Ao ouvir Norberto penso em John Fahey e inevitavelmente em Paredes e em tudo o que é português e rural e penso em vídeos mudos caseiros de super-8 com os putos a darem voltas em triciclos e penso também em ervas daquelas altas a abanarem ao vento, mas estamos dentro do carro por isso não se ouve o vento mas pensa-se no vento.
E também no dia seguinte, penso em todos os dias seguintes.»
Tempos diferentes, um rapaz que se tornou um homem, dizer que se tornou um homem é estúpido, dizer que cresceu também, mas, então, um rapaz que, não, dizer que ele era um rapaz também me parece mal, ai o que é que importa dizer, houve uma evolução, claro, claro-está, ou não, para muito boa gente e bons músicos não parece haver um claro interesse na evolução, mas o que é isso de evolução, acho que no caso do norberto e apetece-me escrever norberto com minúsculas, acho que no caso dele isso da evolução pauta-se apenas pelo seu desejo claro em experimentar, diria que não pensa em progredir pois isto não é cá ciência exacta e há quem prefira o norberto de antigamente, diria experimentar, fazer algo novo mas sem necessariamente cortar com o que ele era antes, ou seja, há norberto lobo neste norberto lobo, há o que ele já foi e o que ele será, será estúpido dizer isto, ou seja, não há um desejo de cortar com as raízes, aquela coisa dos músicos que de repente pintam os olhos e trocam a guitarra clássica por uma eléctrica, há uma graciosa progressão de um norberto para outro que quem o vem já acompanhando ao longo dos anos apreciará com suave sorriso de dente escondido, aliás, que a expressão de um norberto para o outro não sugira dois norbertos, há um de agora e um de outrora mas se o de outrora é o de hoje o de hoje é o de outrora e não já não penso em Fahey e Paredes e sim a música é diferente mas o que sinto durante os seus concertos parece não ter mudado ao longo dos anos, a vontade de me entregar àquela pessoa, um carinho do tamanho do mundo, tudo partilhado com os meus colegas espectadores e não espetadores como agora se diz porque aqui ninguém espeta nada, na quinta-feira passada estava tudo caladinho, mais do que em qualquer homilia já que foi numa igreja que tudo isto se passou, o respeitinho não forçado, mil olhos fechados, como algo que se saboreia intensamente e se quer saborear durante um período que parece sempre pouco, as pausas congeladas no tempo.
Não foi certamente um concerto qualquer, sim houve qualquer coisa de épico a inundar a sala no fim, se por lá ouvi que isto sim leva gente às igrejas, deixem-me acrescentar que isto sim leva o culto e o divino e o sagrado às igrejas, tudo ao mesmo tempo, se calhar não sei o que estou a dizer. Um conjunto de músicas livres, cruzando géneros, experimentando fórmulas, quais fórmulas, o norberto está livre, inventando acordes, respirando só muito de vez em quando, não fazendo dos instintos dissonantes uma vontade de se demarcar mas sim vontade de se questionar, nem um pingo de exibicionismo, uma humildade que faz com que todos naquela hora e pouco de concerto nos sintamos como amigos, dele e uns dos outros, sim talvez como a seguir uma homilia, talvez como nos primeiros concertos dos primeiros tempos do Homem, norberto fica bem a tocar entre amigos mas não será qualquer sala que receba a quantidade de amigos que já tem. Um espectáculo imenso. Um espectáculo bruto e ameno e frugal e grave tudo ao mesmo tempo, sob esta luz simples e muda que prolongou o palco para lá de uma cadeira e uma guitarra, eu que não gosto de igrejas talvez apenas porque não gosto da igreja com maiúscula.
Uivos de saudade, uivos de vento e de paz, uivos de catástrofe de dor e de amor.
(Quem diz é quem é.)
Fotos gentilmente cedidas por Luís Martins