Let England Shake é um álbum conceptual sobre o horror da guerra com letras literatas, melodias memoráveis e uma estética etérea. Nem só do rock vive PJ Harvey…
Lembram-se da PJ Harvey rockeira dos nineties, a mandar paredes abaixo com a distorção? Nada a ver. Em White Chalk, de 2007, Polly já tinha trocado o rock musculado por baladas góticas ao piano, e em Let England Skake, qual Bowie de saias, reinventa-se mais uma vez: é agora cantora de protesto, escrevendo sobre o terror da guerra.
O oitavo disco de Polly Jean Harvey é todo um manual sobre como fazer música de intervenção sem cair na homilia. A cuidada poesia – nunca antes Harvey fora tão literata – não aponta o dedo a ninguém, apenas descreve o horror do ponto de vista de quem a viveu: “eu vi e fiz coisas que quero esquecer / vi soldados caírem como pedaços de carne / trucidados para lá do que julgara possível / braços e pernas pendurados nas árvores”. Ao ligar os conflitos actuais a confrontos antigos (como a Primeira Guerra Mundial), Harvey apresenta a guerra como uma constante na história: sempre foi assim e sempre o será, pois é essa a natureza humana. Inscrevendo o mal no coração de todos nós, foge a qualquer pretensão de superioridade moral, baixando assim as nossas defesas. Quando o murro chega, o murro chega…
Tudo tem a justa medida em Let England Shake. Para evitar o excesso de pompa dramática, Harvey compensa o peso das letras com a leveza na música: os agudos predominam sobre os graves, a voz é suave e etérea como uma neblina, a doçura da auto-harpa prevalece sobre a rudeza da guitarra eléctrica, a reverberação da igreja-estúdio tudo distende e dilui. Mais importante ainda: a alegria pop das melodias mitiga a violência da poesia. De maneira que, sem darmos conta, lá estamos nós a trautear, felizes e contentes, os mais macabros versos: “moscas ziguezagueando/ a morte demorando-se, pestilenta / a carne ondulando ao calor”. Ardilosa e retorcida a senhora Polly…
Como o próprio título indica, um segundo tema atravessa Let England Shake: a pátria. Os pozinhos de folk à Fairport Convention e o inglês quase arcaico enfatizam essa ligação. Harvey fala da sua Inglaterra com um misto de ternura e decepção, facilitando assim a nossa identificação: todos temos sempre alguma ambivalência na relação com a nossa pátria. Let England Shake é particular; porém, universal.
Como se as letras poéticas e as cativantes melodias não bastassem, Let England Shake faz o hat trick com o bom gosto dos arranjos. Outra coisa não seria de esperar, aliás, num projecto que conta com os contributos criativos de Flood, John Parish e Mick Harvey, todos mestres da depuração gourmet. Os samples, por vezes desconcertantes – como uma marcha militar completamente desfasada da melodia em “The Glory Land” -, dão um charme adicional às canções.
Numa outra vida, Harvey deu-nos a perfeição raivosa e sensual de To Bring You My Love. Dezasseis anos depois, com uma estética completamente distinta, mais matizada e erudita, dá-nos um álbum igualmente irrepreensível. Longa vida a Polly Jean…