Nada como começar um artigo sobre música com uma declaração polémica: The Rhythm of The Saints é melhor do que Graceland, ambos de Paul Simon, como se sabe! E pronto, já está, não me custou nada dizê-lo, embora seja incapaz de avaliar o impacto desta pedrada inicial. Agora, dito isto, e se ainda tiver leitores, avancem comigo. Eu tentarei explicar as (poucas) razões sobre o que penso, e no fim cá estarei, dando o corpo às balas e aos insultos, se for esse o caso.
Na verdade, o que separara estes dois grandes discos é apenas uma mudança de continente. Paul Simon andou a trabalhar com sons de África em Graceland (África do Sul, sobretudo) e depois mudou-se de armas e bagagens até à América do Sul para fazer o disco The Rhythm of The Saints. Para o Brasil, para ser mais exato. Esta alteração fez toda a diferença, pelo menos para mim e para os meus ouvidos habituados aos sotaques sonoros e rítmicos do pais irmão. Este trabalho, na minha opinião, deve ser entendido como uma evolução em relação ao anterior, uma vez que Paul Simon aprofunda a sua viragem musical rumo aos ritmos de um mundo que estava, à partida, pouco próximo do seu espaço musical de conforto. A América de muitos dos seus trabalhos anteriores sai do mapa, se assim podemos dizer, e novas geografias começam a tomar parte da sua música. As percussões que abrem o disco na maravilhosa “The Obvious Child”, levam-nos imediatamente para os lugares sincréticos do Candomblé baiano, daí não poder estranhar-se o convite para a banda Olodum participar, não apenas nesta faixa, mas também em outras de The Rhythm of The Saints. Há muita espiritualidade nas letras das canções do disco, e todos sabemos da escrita genial do pequeno homem de Newark. Também por isso este disco merece destaque. Leia-se com a devida atenção as lyrics impressionistas de canções como a já referida “The Obvious Child”, ou “The Coast” (a mais bonita canção de todo o álbum, e uma das melhores criações de sempre do eterno parceiro de Garfunkel), e perceberão as pequenas e maravilhosas histórias que elas mostram, que são de uma enorme riqueza poética, versando os temas da família, do divino, da procura interior, mas também de sofrimento e desconforto evidentes em outras canções ainda aqui não referidas. Passemos, então a “The Coast”. A canção é de uma perfeição formal absoluta, e a presença do baixo de Bakithi Kumalo, bem como a participação de Naná Vasconcelos (uma espécie de deus maior das percussões brasileiras) não podem deixar de ser notadas. Muitas outras pérolas existem no disco, como são os casos maiores de “Further to Fly”, “She Moves On” e “Born at the Right Time”. Lá mais para o final do álbum, outro enormíssimo momento com a deliciosa participação vocal do grande Milton Nascimento, em “Spirit Voices”. Esta faixa, depois de tantas vezes ouvida por mim, talvez seja a maior razão da minha inicial e polémica preferência (este disco é melhor ainda do que Granceland, lembram-se?). A razão principal talvez seja esta: “And all of these spirit voices rule the night”. Este verso final da penúltima canção de The Rhythm of The Saints diz-nos um pouco da soturnidade deste trabalho, muito menos luminoso do que Graceland, mais próximo da terra, mas ao mesmo tempo mais lunar, mais espiritual, mais capaz de acender nos ouvintes pequenas sensações raras de conforto interior, coisas que a mim muito me dizem, e que gosto, naturalmente, de perceber num disco. Tudo isso, e a aproximação tão bem conseguida com sons e ritmos que conheço desde sempre, e que por essa razão me fazem sentir em casa e ser mais uma das “spirit voices” que se soltam desde os primeiros acordes deste trabalho santificadamente mágico.