Depois de dois anos de ausência, os festivaleiros voltaram a Coura e às margens do Rio Tabuão, para um dia dedicado exclusivamente à música portuguesa, onde, entre velhas glórias, novas promessas e alguma chuva, o dia foi um sucesso.
O Enfant-terrible do cinema francês Jean Luc Godard, uma vez disse: “Uma história tem um princípio, meio e fim, mas não necessariamente nesta ordem”.
Paredes de Coura, nada tem que ver com Godard, mas depois de dois anos de pandemia e sem música nas margens do Rio Tabuão, este saudado regresso, parece trazer de volta alguma da normalidade que ficou interrompida algures por esse amargo Março de 2020, e todas as desventuras que se seguiram. Abençoado por uma chuva, que afinal não se revelou tão aborrecida quanto as piores previsões faziam prever, o dia de montra grande para a música portuguesa não desiludiu. Entre nomes consagrados e novas promessas, foi inexcedível a comunhão e o entusiasmo entre bandas e público, uma excelente forma de nos lembrar porque Paredes de Coura sempre foi caso único no panorama musical Português.

Comunhão, provavelmente será uma das palavras certas para introduzir o concerto de Samuel Úria no palco principal. “Isto é lindo, caramba, isto é Mel”, disse assim que entrou em palco, com o sol a brilhar brevemente, e já com uma multidão à espera, este trovador de Tondela, feito cowboy lusitano, foi recebido de forma eufórica, acarinhado por muitos aplausos enquanto foi passeando por vários temas da discografia mais recente, “A contenção” – sempre soalheira, o blues quase fúnebre de “Fico Aquém”, a visita breve ao EP Marcha Atroz via “Fusão”, e ainda deu tempo para servir greatest hits, como a belíssima “Lenço Enxuto”, num arranjo mais despojado apenas com a voz de Samuel e o som da sua belíssima guitarra, ou “É preciso que eu diminua” que arrancou os primeiros passos de dança e animação geral no palco principal do festival.

Do outro lado do recinto, Rita Vian, sob um fundo minimalista, exclusivamente monocromático, ia servindo de abrigo à chuva e de ponto de encontro entre tradição e modernidade, texturas electrónicas, quase líquidas, embrulhadas num grave sempre presente, qual alicerce para a sua voz poder deambular livremente, como no momento em que se entregou A capella a um dueto que os avós costumavam cantar, ao qual se seguiu um enorme aplauso e arrepio colectivo. Com um EP na bagagem (CAOS’A, 2021), um trio de singles de alta precisão, “Purga”, “Diágonas”, “Sereia”, esta última anunciada como uma música sobre o poder de acreditar nas próprias ideias, se dúvidas houvessem, este concerto deixou bem claro como Rita Vian é e pode vir a ser uma excelente ideia na música portuguesa. Nota também para o facto de ser a única representante em nome próprio no feminino deste dia, se a noite era e foi de celebração da música portuguesa, é bom também lembrar que nem tudo está feito ainda.

Entretanto, enquanto Rita Vian se atirava a Amália, já os Linda Martini iam libertando electricidade na medida certo no palco principal. Contra um fundo preto e branco, os quatro músicos de Lisboa, agora com Rui Carvalho (Filho da Mãe) no lugar de Pedro Geraldes, foram passando por alguns temas do novo Errôr, mas não descurando a discografia passada. “Boca de Sal” arrancou o primeiro grande mosh do concerto, “ Ratos” foi servida com energia punk, tocada bem mais rápido, qual frenesim incontrolável. “Putos Bons” a relembrar que Sirumba é um disco óptimo. Durante o concerto o baterista Hélio Morais ainda lembrou, ”Foram dois anos de merda, mas hoje estamos todos aqui”, embora amadurecendo, servida de outras cores, novos truques, a banda continua “aqui”, atravessando uma fase de mudança e talvez de menor fulgor e inspiração, os Linda Martini continuam a saber que esta energia nunca deixou de ser a marca principal da banda. Jarda Emocional, poderá dizer-se, e bem, porque a ver por “Cem Metros Sereia”, “Amor Combate”, estas malhas continuam a ser gritadas como verdadeiros hinos. “Taxonomia” como belo e contundente final, para deixar bem claro que ninguém se esqueceu de onde vem.
Contundente, adjectivo de dois géneros, pode provocar lesão ou contusão pela pressão exercida numa parte do corpo, batendo ou chocando. Que é duro e pesado ou é descarregado com força.

Dedicando o concerto exclusivamente ao disco de 2019, No fim era o Frio, o que dizer do concerto de Mão Morta senão isto, um verdadeiro tour de force. Ancorada nessa presença magnética e incontornável de Afonso Luxúria Canibal, os bracarenses foram entregando um concerto irrepreensível, a nova formação completamente entrosada, Adolfo pleno na sua teatralização de decadência e lascívia. Tal como perguntaram no final do concerto, esperando a devolução do público, “Somos os cabrões dos…Mão Morta”, “Somos os cabrões dos…Mão Morta”, “Somos os cabrões dos…Mão Morta, ainda bem que sabem”. Uma vitória total.
Nestas lides de festivais, nem sempre é fácil encontrar-se espaço e tempo para sorver as coisas da melhor maneira, mas a tenda do Palco Vodafone FM encheu para receber a pequena orquestra de Bruno Pernadas, brilhando como de costume com a sua precisão e melodioso virtuosismo, o concerto de Bruno Pernadas pareceu curto ainda assim, como se ao longo dos cerca de 45 minutos fosse perdendo alguma daquela densidade que por vezes só as salas fechadas e uma atenção menos dispersa conseguem providenciar.

Em sentido contrário, o concerto de Sam the Kid, que começou logo depois, era se calhar aquele que mais atenções reunia. Acompanhado pelos companheiros de Orelha Negra, e por uma orquestra de jovens músicos, foi o pai, Napoleão Mira, a ter honras de abertura, com a declamação de “Santiago Maior”, abrindo caminho para a entrada triunfal de Samuel Mira, com a maior enchente da noite a aplaudir efusivamente. 20 anos depois da sua estreia, o rapper regressou ao Minho, com outro estatuto, com mais uns quilinhos, como o próprio disse, mas seguro nesta caminhada que de alguma forma, também reflecte algo do que tem sido feito ao longo deste tempo na própria música portuguesa. Um público fervoroso, que se foi deliciando e vendo retribuída em elogios a sua entrega, “Estou bué emocionado por ver a vossa energia” disse a dada altura, foi presenteado com vários clássicos, que certamente muito do jovem público ainda não tinha tido ocasião de ver ao vivo, “Juventude (É Mentalidade)”, “Não Percebes”, Retrospectiva de um Amor Profundo”, foram celebradas de forma efusiva, antes de chegar ao ponto do alto do concerto, e ao delírio colectivo que foi “Poetas de Karaoke”, para fechar “Sendo Assim” e um sucesso retumbante nesta segunda passagem pelo festival minhoto.

Quando chegámos ao concerto de Conjunto Corona, já se fazia a festa, Db gritava “Isto aqui é JARDA”, antes de se atirarem a “Perdidos na Variante”, segundo o próprio, uma música dedicada a todos aqueles que se perdem na variante a caminho de Gaia, essa terra que está a virar de alguma forma, porta estandarte do melhor da Portugalidade. Desta vez sem Kron, e alguns dos comparsas que costuma acompanhar o duo em palco, Db e Logos, foram os anfitriões dessa festa sempre bem humorada que é um concerto de Conjunto Corona, “Santa Rita Lifestyle” com direito a um cartaz que viajou do público ao palco, e do palco ao público, num momento de bela democracia, “Pacotes”, “Eu não bebo Coca Cola eu Snifo” a resgatar o lado mais surrealista da banda, “187 no Bloco”, “Mafiando Bairro a Dentro” a lembrar que Corona também é rock psicadélico, antes dessa volta de 360º até ao Reggaeton made in Rio Tinto que é “Mãe Virei Gandim”. Goste-se ou não, Conjunto Corona é sempre uma festa.

Para fechar a noite e o palco principal deste primeiro dia, Moullinex. Com a sua banda, Luís Clara Gomes foi entregando um concerto em modo DJ Set, sem pausas entre músicas, fazendo o muito público que ainda se encontrava no recinto dançar no início ao fim. No final, ”Take My Pain Away” com direito a vários amigos ilustres em cima do palco, para dançar e celebrar em família, esta grande festa da música portuguesa.
Hoje a festa segue no Couraíso, com destaque para os concertos de Idles, Beach House ou BadbadnotGood.
Fotografias: Francisco Fidalgo