Soube hoje que nos tinhas deixado querido amigo e a minha torre da canção ficou mais pequena e frágil. Não foi cedo de mais, já tinhas 82 anos e viveste uma vida cheia. Pode ser o início de Novembro, mas parece-me mais o fim de Dezembro e, infelizmente já não te posso escrever para saber se estás melhor. Mas quero acreditar que sim. Há poucos dias ouvi-te confessar “I’m ready, my Lord” e eu preparei-me para te perder, mas deixar-te ir não é fácil. Acredita em mim quando te digo que hoje acordei e senti-me mais sozinho.
Sei que a tua vida não foi fácil e que te sentiste muitas vezes deprimido. Descobri-o nas mil e umas vezes que falámos. Bem, na verdade eras tu que falavas e eu ouvia, embevecido com a forma como te servias das palavras, como davas conseguias invocar tanto erotismo por entre a mágoa. Escrevias porque não percebias o mundo e a vida e esta era a tua forma de o compreenderes e por isso as tuas histórias eram tristes, porque o mundo e a vida também são muitas vezes tristes. Falavas de amores não correspondidos, ou de dúvidas existenciais, até do Holocausto, sem nunca deixares de lado a beleza que encontravas em tudo, pontuando sempre as tuas histórias com um pouco de ironia e aquela sensualidade tão tua. Sim, porque nem tudo é mau, há sempre beleza neste mundo, ensinaste-me tu. E por isso, querido amigo, hás-de-me desculpar porque, por enquanto, não consigo ver beleza na tua morte, apenas tristeza. Eu sei que desculpas, tu perdoas toda a gente porque és uma óptima pessoa.
Preparaste-me para a tua morte, eu sei, mas mesmo assim nunca é fácil lembrar-me que não voltas a acordar e nunca mais vais ter uma nova história para contar e que numa das tuas últimas canções confessaste-me que achavas que Deus tinha decidido na tua hora e por isso a tua chama se ia apagar. E agora que isso aconteceu o reconforto que encontro é nas tuas canções, no Amor que deixaste.
Gosto de te lembrar numa pequena vila na Grécia a encontrares uma linda rapariga chamada Marianne. Teriam ambos perto de 20 anos e já eram “quase novos”. A felicidade que viveste com ela fez-te esquecer de rezar aos anjos e achavas que isso tinha ditado o fim do vosso amor. E talvez a tua paixão pela Marianne não tenha sido tão duradoura como a do Johnny Cash pela June Carter, mas a verdade é que morreste quatro meses depois dela, como aconteceu ao Johnny depois da June falecer. Sei que quando soubeste da doença da Marianne lhe escreveste uma carta. A carta é lindíssima e nela mostraste que estavas frágil e a preparar-te dançares a mesma valsa que ela, essa valsa terrível.
“Well Marianne it’s come to this time when we are really so old and our bodies are falling apart and I think I will follow you very soon. Know that I am so close behind you that if you stretch out your hand, I think you can reach mine. And you know that I’ve always loved you for your beauty and your wisdom, but I don’t need to say anything more about that because you know all about that. But now, I just want to wish you a very good journey. Goodbye old friend. Endless love, see you down the road.”
Quando agora leio a parte em que dizes que se ela esticar a mão pode tocar a tua, fico contente por saber que tens alguém para te acompanhar na morte, embora sendo tu budista, a morte para ti não é algo assim tão mau, certo? É apenas um novo começo não é? Hoje quero acreditar que sim.
(Sabes qual é a melhor e ao mesmo tempo a pior coisa de uma carta escrita no computador? Não tens de acrescentar Post Scriptums. Mas deixo-te já aqui um: dancei e namorei várias vezes ao som da tua canção “So Long Mariane”.)
Suzanne. Lembras-te? Quantas vezes me contaste esta história? E é tão boa que até a Nina me repetiu outras tantas vezes. Quisemos os dois viajar com ela, segui-la cegamente; afinal, tocámos o corpo perfeito dela centenas de vezes na nossa mente – e eu não consigo deixar de pensar que também o tocaste com o teu próprio corpo. Obrigado por nos teres deixado esta história, que é nossa, que não quiseste que fosse tua, porque seria errado “ficares rico com esta canção”. Eras um cavalheiro.
Cantaste sobre o Amor e o Ódio, mas sejamos sinceros, sempre percebeste mais do Amor. E a ideia de te escrever esta carta vem precisamente de uma história de amor, ressentimento e perdão que me contaste, sob a forma de carta. Era uma história sobre a tua Jane que não foi só tua. Pertenceu também ao teu amigo que tinha uma gabardina azul rasgada no ombro e que tu consideravas como um irmão, mas também dizias dele que era o teu assassino. Embora ele te tenha magoado, tiveste saudades dele e perdoaste-o. Era esse o tipo de homem que eras, um homem bom e que perdoava – e como eu gostava de ser como tu, Leonard.
Mas a verdade é que também eras um homem e como tal tinhas as tuas vaidades e gostavas de te gabar. Uma vez contaste-me que tinhas estado com uma mulher no Hotel Chelsea, um marco boémio e artístico dessa cidade fria que é New York. Às vezes davas pistas sobre essa mulher misteriosa que acabei por perceber ser a Janis Joplin. Por isso é que me contaste a história tantas vezes sem nunca dizer o nome, não foi? Sabias que eu ia ficar com ciúmes por nunca a poder ter conhecido ou tocar, por a ter adorado à distância. Acho que apesar da inconfidência, a amaste à tua maneira, como ela te amou a ti, mas talvez seja eu a querer justificar a tua indiscrição e a ser um romântico que adorava ver-te com essa Margarida.
(Outro Post Scriptum a meio desta carta: A Janis negou ter tido alguma coisa contigo, portanto acho que nunca saberemos o que se passou entre vocês. Ainda bem, é da forma que não fico chateado contigo.)
E quando me mostraste aquela oração que escreveste? “If it be your will” rezaste tu, mas de quem era essa vontade de que falavas? A vontade de um Deus que conhecias ou de uma mulher que amavas? Talvez seja uma vontade dos dois, talvez os dois sejam a mesma pessoa, mas a tua prece deu-me forças para escrever esta carta sem te ressentir, porque sei que estavas pronto para partir, apesar de eu querer que vivesses até aos 120 anos, como prometeste.
Sabes aquela história que escreveste com quase 80 versos? Contaste-me que desesperaste centenas de vezes até a conseguires completar e mesmo assim não ficaste satisfeito, por isso tantas vezes experimentaste versos diferentes durante as vezes que a contaste. Afinal, há tantos “Hallelujahs”. O teu é o original, cheio de amor e referências bíblicas, mas não é o único. Quantas vezes ouviste outras pessoas contar a tua história? O John Cale tentou mostrar um tom sóbrio e frágil que inspirou a forma como o Jeff Buckley cantou este teu poema. Ele fez um “Aleluia ao orgasmo”, à sensualidade, ao amor. Mas como foi ele que me fez chegar a ti, o Jeff para mim cantou um Aleluia a ti Leonard. Nunca te disse isto amigo, mas o teu “Hallelujah” é uma canção perfeita, daquelas bonitas e tristes que fazem amar e que guardo marcada no meu corpo e na minha memória.
Foste duro contigo, achavas que eras má pessoa, mas eu sei que não. Comparavas-te a um pássaro preso num arame e dizias que não eras gentil e que eras falso, mas poucos foram tão sinceros como tu e tudo o que fizeste de errado, conseguiste emendar, como prometeste que farias.
Acima de tudo amaste e dançaste. Dançaste com mulheres, homens, palavras e até com Deus. Valsaste e escreveste cheio de ironia, sensualidade, bondade e amor e tornaste-te meu amigo.
Numa crónica sobre ti, o Miguel Esteves Cardoso, que te conheceu e está tristíssimo com a tua partida, mas que também não chorou, escreveu: “Leonard Cohen nasce todos os dias até ao dia em que não acordar e ficar para sempre”. Nunca chegaste a acordar para o dia 11 de Novembro de 2016. E, embora me tenhas avisado que ias partir e me tenhas deixado um livro cantado de despedida, “that’s no way to say goodbye” meu querido amigo, nem mesmo que me tenhas ensinado a dançar até ao fim do amor. Desculpa a ingratidão, mas queria que vivesses para sempre.
Sincerely, D. Barreto.