A criatividade é uma criatura caprichosa: tão depressa nos desce à alma, iluminando-nos com o seu clarão brilhante; como depois parte, sem nos dar satisfações, deixando-nos vazios e inúteis como uma bola furada. Falamos, é claro, da obra dos Metallica: perfeita até 1991; da mais embaraçosa mediania, desde então. Mas que se lixe a verdade quando ela é dolorosa. Finjamos que o mundo acabou em 1991, e que os Metallica continuam a ser a melhor banda de heavy metal do mundo…
A história dos Metallica começa em 1981, quando um puto dinamarquês a viver em Los Angeles põe um anúncio no jornal à procura de gente para a sua banda. O puto tem o estranho nome de Lars Ulrich, toca pessimamente bateria, e é fanático pelo novo metal que vem do Reino Unido: bandas cheias de genica como os Motorhead, os Iron Maiden, os Diamond Head e os Venom. Quem respondeu ao anúncio foi outro miúdo cheio de acne chamado James Hetfield. Este momento instaurador é essencial para percebermos as dinâmicas de poder dos Metallica até aos dias de hoje: quem sempre liderou a banda com pulso de ferro foi esta dupla fundadora Ulrich/Hetfield; e, se formos forçados a destacar um líder, foi sempre o seu primeiro membro, o cerebral Lars Ulrich, a assumir o comando.
Pouco tempo depois, entra o quezilento Dave Mustaine para o lugar da guitarra-solo, mas em 11 de Abril de 1983, na véspera de gravarem o primeiro álbum, o resto da banda dá-lhe um valente chuto no cu. Os pretextos para a expulsão foram muitos, mas a verdadeira razão foi apenas uma: uma banda aguenta no máximo dois egos grandes e controladores; para o grupo não se fracturar, era essencial livrarem-se do terceiro. O “yes man” Kirk Hammett ocupará o lugar deixado vazio. Este acontecimento foi fundamental na mitologia dos Metallica pois gerou a lendária rivalidade com a nova banda de Mustaine: os Megadeth. Muitas revistas de metal foram vendidas graças a este olímpico ressentimento.

Insatisfeitos com o baixista original, os Metallica não descansam enquanto não contratam o virtuoso Cliff Burton, célebre por fazer soar o baixo como uma guitarra. Cliff só aceita o convite na condição de a banda se mudar para São Francisco, onde vive. Fartos da cena de Los Angeles, toda ela centrada na futilidade melosa do hair metal, nem pensam duas vezes, mudando-se de armas e bagagens para a baía de São Francisco.
O espólio dos Metallica começa em 1983 com o portentoso Kill’Em All, o álbum que inventou o thrash metal. A sua rapidez alucinante, o seu peso avassalador e a sua maníaca precisão transfiguram por completo a paisagem do metal, influenciando milhares de bandas. Não há quaisquer concessões neste disco: tudo nele é veloz, rebelde e adolescente. De um dia para o outro, tornam-se os deuses incontestados do underground. A fronteira entre o metal clássico da velha guarda e o metal extremo da modernidade acabara de ser traçada.
Em 1984, lançam o eclético Ride the Lightning. Num padrão que viria a ser recorrente, os Metallica surpreendem os seus fãs com uma sonoridade nova, onde excertos acústicos, baladas e instrumentais afugentam para sempre a ala punk da sua base de fãs. A nova sofisticação melódica e harmónica dos Metallica foi um legado de Cliff Burton, o único dos quatro a ter uma formação musical clássica. O quarteto de São Francisco pode ter patenteado o thrash, mas de maneira nenhuma aceita ficar prisioneiro do seu livro de regras. E a mudança não significa a suavização do seu som; antes pelo contrário. A introdução lenta e acústica de “Fight Fire With Fire” – dedilhando uma velha canção trovadoresca – cria um poderoso efeito de contraste: quando o tema, por fim, acelera tudo nos parece mais rápido e brutal. A balada “Fade to Black” alimenta-se da mesma oposição entre doçura e violência. Do primeiro para o segundo álbum, os Metallica tinham feito uma descoberta decisiva: o melhor metal vive sempre desta tensão entre luz e sombra.

Ride the Lightning é também crucial por outra razão: cria um modelo estético, imitado descaradamente nos dois discos seguintes. O que significa que quase toda a obra dos seus anos doirados foi feita à sua imagem e semelhança. Para acentuar o classicismo do formato, até a disposição das faixas se manteve muito semelhante nos três discos: a abrir o álbum, um tema thrash a rasgar, precedido por um prólogo acústico (“Fight Fire With Fire”, “Battery”); na segunda faixa, a canção-título, longa, lenta, pesada e épica (“Ride the Lightning”, “Master of Puppets”, “… And Justice for All”); na quarta faixa, uma balada com um final pesado (“Fade to Black”, “Welcome Home (Sanitarium)”, “One”); e, como último tema, um longo instrumental (“The Call of Ktulu”, “Orion”, “To Live is to Die”).
O único tema que mancha Ride the Lightning é o flácido “Escape”, com o seu refrão previsível e açucarado (um trágico prenúncio do que viria a ser a regra nos desinspirados anos 90).
Já Master of Puppets, vindo ao mundo em 1986, é um disco perfeito, sem uma única nota a mais ou a menos. Se esta obra-prima segue à risca o molde encetado por Ride the Lightning, tudo agora é mais belo e profundo: um equilíbrio exacto entre brutalidade e melodia. Até a nível das letras se nota um salto de gigante, agora com um tema definido: a manipulação das massas, nos mais diversos contextos: a guerra (“Disposable Heroes”), a religião (“Leper Messiah”) e as drogas (“Master of Puppets”).
O génio da sua música é agora grande demais para ser ignorado pelo mainstream. Até o jornalismo musical generalista não tem outro remédio senão fazer capas com os Metallica, obrigado a engolir os seus mesquinhos preconceitos contra o metal. Mas o destino é madrasto. Justamente num momento em que tudo na carreira dos Metallica corria de feição, a pior das tragédias acontece. No dia 27 de Setembro de 1986, o autocarro que os levava numa digressão pela Suécia despista-se e Cliff Burton morre instantaneamente. O lugar foi depressa ocupado por Jason Newsted, mas o fantasma do carismático Cliff ficaria a pairar para sempre…

Em 1988, surge o polémico … And Justice For All, o mais mal-amado dos discos clássicos; a meu ver, injustamente. O thrash é agora colocado em suspensão, com excepção da faixa de encerramento: a vertiginosa “Dyers Eve”. O que agora é desenvolvido até ao limite é o lado progressivo: faixas longas, mais pesadas do que rápidas, com complexas mudanças de tempo e variações melódicas. Cada música é uma delicada peça de filigrana, trabalhada com uma minúcia notável, quase obsessiva. O prog metal acabadinho de nascer…
A produção do disco tem sido criticada como fria e inorgânica, devido à ausência de reverberação; mas, para mim, sempre a entendi como uma frieza elegante, como a de uma estátua grega, perfeita e incorruptível no seu mármore frio. O som do baixo, quase inaudível, é não só objecto de crítica como como também das mais selvagens psicanálises. A teoria da conspiração dominante é a de que a banda, não tendo ainda feito o luto pela morte do seu amigo Cliff, dirigira toda a raiva reprimida para o desgraçado do novo baixista. O que é certo, porém, é que os discos dos Metallica raramente foram amigáveis para as linhas de baixo, fossem elas de Burton, Newsted ou Trujillo. Na maior parte das vezes, é preciso um intrincado jogo do “onde está o Wally?” para as encontrar…
… And Justice for All é o disco mais político dos Metallica. O tema que atravessa todo o álbum é a injustiça das instituições, corrompidas pelo dinheiro e pelo poder. A podridão mina as mais diversas esferas: a liberdade (“Eye of the Beholder”, “The Shortest Straw”), o meio ambiente (“Blackened”), o sistema político e económico (“… And Justice For All”). A tal produção gélida assenta que nem uma luva no negrume do seu tema.
Se mais argumentos não houvesse para elevar … And Justice For All ao estatuto de obra-maior, um só bastaria: é o disco que contém “One”, a canção mais bela em todo o cânone dos Metallica. O seu vídeo-clip rodou muito na MTV, dando cada vez mais visibilidade à banda. Mas ninguém imaginava a escala do que viria a seguir…
Em 1991, os Metallica colocam o seu disco homónimo nos escaparates. O “álbum negro” faz uma nova revolução sonora, simplificando a sua música, reduzindo a sua velocidade e violência, e adaptando-a ao formato-canção. Com Ride the Lightning e Master of Puppets, e em temas como “Creeping Death” e “Battery”, a banda tinha levado a velocidade thrash até ao limite das suas próprias capacidades técnicas. Da mesma maneira, o caminho da complexidade prog tinha sido igualmente explorado até à sua conclusão em … And Justice For All. Para uma banda que nunca gostou de se repetir, a simplicidade pop do novo disco era um passo lógico.

O disco foi um gigantesco sucesso comercial e com toda a justiça: grandes canções, grandes riffs, grande produção. Para se ter uma ideia da dimensão do êxito, foi o álbum que mais vendeu nos Estados Unidos nos últimos vinte e cinco anos, com mais de 16 milhões de cópias em caixa. Foi ele que democratizou a música pesada, e é esse o seu grande legado.
A malta do metal, sectária por natureza, torceu o nariz, acusando os seus velhos ídolos de se terem vendido. Creio que a acusação é injusta. 1991 foi um ano de profunda mudança na indústria musical. Depois do inesperado sucesso do Nevermind, os holofotes mediáticos viraram-se para tudo o que soasse diferente, ousado e verdadeiro. Canções enormes como “Enter Sandman” e “Sad But True” preenchiam os requisitos. Mesmo as baladas “The Unforgiven” e “Nothing Else Matters” – os temas que mais haviam indignado os fãs da velha guarda – estavam a léguas de distância da artificialidade açucarada do hair metal dominante nos anos 80. Creio, portanto, que não foram os Metallica que procuraram o mainstream, mas justamente o oposto.
A música do Black Album já não é heavy metal mas apenas rock pesado. Para a malta do metal, esta mudança de estilo representa uma blasfémia e uma traição. Para mim, que nunca percebi o acantonamento do gosto num só território musical, a opção por uma nova linguagem não me provoca qualquer urticária. Com o seu “álbum negro”, continuo a achar que os Metallica nos oferecem música de primeiríssima ordem, apesar de agora estarem situados em coordenadas musicais mais leves e acessíveis. Só os moralistas estéticos consideram a acessibilidade como um pecado capital…
Por isso, acho que muita gente desdenha os últimos álbuns dos Metallica pelas razões erradas. O crime de Load (1996) e Reload (1997) não é a acessibilidade do seu hard rock (afinal de contas, bandas como os Guns, os AC/DC e os Aerosmith fizeram maravilhosos discos de hard rock acessível). Load e Reload são péssimos apenas e somente porque as suas canções são desinspiradas e aborrecidas. Da mesma forma, St. Anger, de 2003, não é um disco entediante por causa de não haver solos, ou por causa de a bateria soar como o raio de uma tampa de uma panela; o disco é intragável porque os seus temas são, mais uma vez, chatos e compridos. A prova de que o mal dos Metallica reside na perda de criatividade e não em cedências comerciais foi-nos dada em 2008: quando regressam ao thrash metal com Death Magnetic, as canções são tão velozes e brutais como insonsas e esquecíveis…
Não poderei acabar este artigo sem uma fervorosa profissão de fé. Quem nos seus primeiros anos fez cinco álbuns geniais, que mudaram por completo a história da música pop, regressará certamente, numa manhã de nevoeiro, aos discos transcendentes. No próximo dia 18 de Novembro, irá sair o novo álbum, Hardwired… to Self-Destruct. Que a profecia do regresso em grande dos deuses do metal se cumpra por fim…