Uma semana sem Bowie. Uma semana e muitos de nós ainda não se refizeram. Muitos passaram a semana a ouvi-lo, a regressar à sua arte, aos discos que nos marcaram nas diferentes fases da nossa vida. Voltamos ao que ele fez, ao que ele nos deixou, enquanto crescíamos ao mesmo tempo que a sua persona artística.
A notícia bateu-nos com a força que só a surpresa e a incredulidade podem garantir. Acordámos para uma semana de trabalho, sofrendo o choque de imediato. Cada um ao seu ritmo, da sua forma, foi reagindo, despertando do torpor, procurando saber mais, encontrando consolo nos outros que, como nós, o amavam. Criaram-se festas espontâneas, como aquela coisa lindíssima no bairro londrino de Brixton, que viu nascer David Jones em 1947. Dois dias antes da sua morte, numa festa no Fontoria, passei “Suffragette City”, sem saber o que viria depois. Redacções de todo o mundo, e também a do Altamont, prepararam especiais, organizaram artigos, deram capas lindíssimas. No facebook, palco habitual de querelas e exercícios manientos, o que se viu foi a partilha de músicas, de imagens, de vídeos, com muita gente a descobrir coisas novas, como o extraordinário sentido de humor que possuía. É claro que houve, como há sempre, quem desenterrasse as alegações de implicação do homem Bowie em esquemas de fuga ao fisco e antigas acusações de abuso de menores, num esforço de chamar a atenção para si próprio, um legítimo mas patético ensaio de diferença opinativa que se esgota nessa fuga à carneirada chorosa, sem qualquer resultado a não ser o silêncio. Mas a verdade é que 99,9% das reacções foram de choque e de amor.
Perdemos muitas figuras do mundo artístico, naturalmente. Perdemos até gigantes de dimensão mediática semelhante ou superior, como Michael Jackson, há uns anos. Mas se, no caso deste último, a sua imagem pública se havia degradado por escândalos vários e por uma decrescente qualidade na produção musical, no caso de Bowie a arte ganhou à novela. O pedido de respeito feito pela família foi religiosamente cumprido. Não houve artigos sensacionalistas sobre as circunstâncias da sua morte, insinuações bacocas ou relatos pseudo-íntimos das cerimónias fúnebres ou perfis sobre a vida pessoal actual do artista.
O que houve foi um movimento feito de respeito e de muito amor, que talvez surpreendesse o próprio Bowie, que há mais de uma década deixou de se alimentar dos holofotes públicos.
Bowie, que sempre viveu do risco, da controvérsia e da mudança, afinal gerou uma inesperada unanimidade na hora da sua teatral partida. Há um Bowie para toda a gente, um que cada um acarinha mais que os outros: o Bowie glam (o meu preferido), o Bowie pop, o Bowie experimental de Berlim, o Bowie electrónico, o Bowie actor, o Bowie ícone da moda. É daí que vem esta capacidade de atrair para a sua causa gente tão diferente, e de gerações tão variadas. Daí e do facto de, no meio de décadas de um percurso arriscado no mundo decadente das artes, musicais e não só, Bowie ter falhado mas nunca ter decaído artisticamente. Este seu último suspiro (grito?) artístico, Blackstar, é a peça do puzzle que faltava, o testamento musical de um homem que, aos 69 anos, ainda nunca se conformara e que, perante a foice terrível da morte, nos deu um profundo, intenso e pessoalíssimo retrato de um homem, da sua vida e da sua mortalidade.
Os discos de Bowie voltaram a vender, Blackstar já tem garantido o lugar na História que a sua qualidade seria suficiente para merecer, Bowie depois de morto anda a destruir recordes de visualizações de vídeos das Adeles desta vida. O mundo quer celebrar Bowie, e está a fazê-lo da forma certa. Com um carinho imenso e através da sua obra (a relativa indiferença com que a sua partida foi encarada pela malta mais nova é um dano que é necessário reparar, pela divulgação da sua obra, que fala por si).
Por uma vez, nestes tempos conturbados de ódio, conflito, indiferença e contradição, as pessoas uniram-se e celebraram o homem e, sobretudo a sua arte.
O mundo anda a precisar de um abraço. Pela forma como se comportou nesta semana, merece esse abraço. Talvez ainda haja esperança.