Convidámos os nossos bons amigos transatlânticos para uma entrevista, e a resposta não tardou: sim! Pois claro, como não?! Os Carne Doce vão tendo no Altamont o único espaço de merecida promoção do seu trabalho em Portugal, e por isso a entrevista teria de ser feita. Aproveitando a saída do seu novo Princesa, foi Salma Jô quem deu a voz às questões colocadas. Para variar um pouco, falou em vez de cantar…
Altamont: Como é a vida de uma banda de rock que tenta fazer e mostrar o seu trabalho no Brasil de hoje, ainda por cima vivendo na periferia dos grandes centros como São Paulo e Rio?
Salma Jô: O Brasil é complicado, pois não tem um mercado sustentável de música independente. São poucas as casas para tocar e o público de rock e indie é restrito. O facto de estarmos na periferia realmente é uma desvantagem. Tanto pela questão do preconceito de críticos do eixo, que tem interiorizada a ideia de que o melhor só pode vir das suas capitais. Mas também pela logística, que encarece tudo. Sabemos também que se morássemos em São Paulo, se estivéssemos cotidianamente encontrando os curadores e produtores nos bares e nos shows das nossas bandas amigas, se lembrariam mais de nós.
Conta-nos como nasceu a Carne Doce.
Nasceu do nosso casamento. Macloys sempre tocou e teve banda. Eu comecei por causa dele. E um dia começamos a Carne Doce.
Desde o EP Dos Namorados até ao recente Princesa, há um caminho artístico percorrido e uma evolução que me parece óbvia. O que foi mudando na vossa forma de compor e de estar na música?
Da minha parte sinto que aprendi a interpretar melhor, a dar mais dinâmica à minha voz, a ouvir melhor os outros integrantes e a banda como um todo. No palco também estou muito mais tranquila. A prática de shows nos prepara para coisas que nem imaginamos, sobre lidar com o próprio corpo, sobre lidar com o público e aproveitar as condições do lugar. Na composição também estou menos ansiosa e mais consciente.
Como tem sido recebida pela crítica e pelo público a “vossa nova Princesa“?
Acredito que Princesa está tendo um sucesso maior de público que de crítica, embora a receção de ambos tem sido positiva. As pessoas estão se afetando pelas letras num volume que ainda não tínhamos visto. Pela repercussão até aqui, sinto que acertamos.
E para ti, como é que olhas para este vosso segundo longa duração? Como é que o apresentas?
Acho que preciso de mais tempo para olhar com distância para os dois discos e entender o que fizemos. Ele é uma compilação que demonstra a nossa evolução do primeiro disco até aqui. É assim que o vejo hoje. E é uma reafirmação do nosso humor, da nossa personalidade, do que apresentámos no primeiro disco.
O que se passa em Goiânia para que tão bons grupos vão aparecendo? Que fenómeno é esse?
Talvez devamos agradecer aos primeiros rockeiros. Faz uns 20 anos que a cidade tem uma cena pequena, porém de apaixonados. O rock pegou bem aqui, onde abunda uma cultura conservadora, rural, e talvez esse contraste tenha sido fundamental. Essa cena foi se profissionalizando e aumentando o nível, e a cada vez surge uma banda que surpreende, que vai um pouco mais longe, que faz um som ainda mais “nossa-dá-pra-acreditar-que-é-de-Goiânia?”. Foi assim com Hang the Superstars, Violins, Black Drawing Chalks, Hellbenders e, hoje, Boogarins. Nenhuma banda de Goiânia foi tão longe ou teve a perspectiva que o Boogarins tem hoje (nem acho que tenham sido tão interessantes também, é preciso ser justo), mas talvez elas, e os festivais e os produtores da cidade, abriram parte desse caminho. Muitas precisaram parar porque esse caminho foi para elas impossível.
Vocês sentem-se portadores de alguma marca regionalista, digamos assim, na vossa música?
Acho difícil dizer que não, pois não é possível que não sejamos afetados pela cultural da nossa região, pelo nosso legado, pela música sertaneja… mas não é algo que portamos conscientemente, não é uma inspiração direta. A história e cultura tradicional de Goiás não são fomentadas e valorizadas e vividas como em outros estados do Brasil. A música que chamamos hoje de sertaneja quase nada tem a ver com o que a originou, e hoje é uma colagem de estilos das mais variadas origens, com muito do pop estrangeiro. Nós também somos.
Falando um pouco sobre a música brasileira em geral, como é que olhas para ela atualmente, que nomes gostarias de destacar, o que há de novo que te pareça interessante?
Tem tanta coisa boa, tanta coisa diferente. Dos que já estão trabalhando junto com a gente: Baiana System, Vitor Brauer, Mahmed, Ventre, Baleia, Francisco El Hombre, Inky. Na nossa cidade tem a Lutre que está começando e que já gostamos muito.
E em relação ao passado, quais são os teus ídolos, os vossos ídolos, se os tiverem, os discos e os artistas da música brasileira que fazem parte da vossa vida, e que importância tiveram eles para a Carne Doce?
Minha ídola-mãe é Elis Regina, mas além dela, minha mãe me aplicou todas as grandes divas, de Nina Simone, Billie Holiday, Aretha Franklin a Edith Piaf e Maria Bethania, Mercedes Sosa. Os grandes letristas brasileiros, o trio básico Chico, Gil, Caetano. Eu sou clichê. Continuo gostando hoje de quem personaliza esse combo intérprete-letrista: de St Vincent a Beyonce.
Os meninos trazem cada um influências diferentes, João e Rik, os mais jovens, trazem as coisas mais atuais mesmo, Tune Yards, Arcade Fire, Foals, BadBadNotGood. Mac e Derso trazem as referências mais clássicas do rock dos anos 80 e 70.
Como sabes, o Altamont sempre vos recebeu de braços abertos desde a primeira hora, por isso é natural que vos queiramos ver ao vivo em Portugal. Podemos ter essa esperança? Para quando?
Sentimos que isso é urgente mesmo, queremos muito. Esperamos que aconteça no começo do ano que vem.
Para terminar, queres deixar alguma palavra para o Altamont e para os seus leitores?
Que nos escutem, e se gostarem, que contem aos outros, que peçam o nosso shows aos produtores das suas cidades. E se não gostarem de nós que escutem as outras bandas que citei, certamente terá alguma que agradará.