Com apresentação ao vivo marcada para 10 de Novembro, no São Luiz, Noiserv explicou ao Altamont de onde veio a ideia de mudar quase tudo no seu modus operandi.
Tudo é novo, no álbum que Noiserv edita esta semana. David Santos, além de membro dos You Can’t Win, Charlie Brown, é o verdadeiro homem dos sete instrumentos. Nos três discos anteriores, já nos habituou à “orquestra Noiserv”, com loops infinitos e dezenas de camadas de instrumentos, em músicas que nos fazem sonhar. Agora, com 00:00:00:00, troca-nos as voltas. O disco foi feito todo ao piano, apenas piano, e é cantado em português, coisa que Noiserv só tinha tentado uma vez, na banda sonora de José e Pilar.
O disco é descrito como a banda sonora de um filme que ainda não existe. Quando começaste a criar as canções já tinhas isso em mente, ou o conceito veio depois?
Eu quando comecei a perceber que acharia interessante fazer um disco mais ao piano, que embora pudesse manter a ideia dos loops – porque há algumas músicas que têm 4 ou 5 pianos a tocar ao mesmo tempo – quis-me limitar à ideia só do piano, automaticamente me ligou muito às imagens que aquilo um dia poderia vir a ter. Portanto, não digo que o conceito tenha aparecido antes de começar a fazer as músicas, mas também não apareceu no fim. Se calhar, quando tinha dois ou três rascunhos, comecei a desenvolver essa ideia de “isto era uma boa banda sonora”. E a partir daí veio todo o conceito, do disco, da capa, do título, e as coisas foram surgindo.
Lá está, o título, 00:00:00:00, vem das câmaras da filmar.
Sim, isto é o “time code” zero, é o início das câmaras. É as horas, os minutos, os segundos e os frames. E quando está no princípio, está tudo a zeros. E a ideia é essa, se há um filme que pode vir a ser feito disto, e esse filme pode ser um filme real ou um filme na cabeça de quem está a ouvir o disco, mas os filmes começam sempre do zero. Ou seja, está aqui a base para que o filme possa começar.
Quando estavas a fazer o disco, já ias fazendo imagens na tua cabeça?
Sim, podia ter umas imagens, mas nunca nada muito concreto, de uma história ou um guião que o filme pudesse ter. Acho que todas elas acabam por ser um suporte de uma relação qualquer de uma viagem, em que há aqueles momentos do filme em pela janela do carro vês as coisas a passar. Portanto, as únicas imagens que eu acho que seria óbvio este filme vir a ter era claramente de uma viagem, de um sítio para o outro. As imagens que podiam existir na minha cabeça seriam um bocado essas, mas em termos de guião nunca avancei muito.
E essas imagens, a preto e branco ou a cores?
Não sei, por acaso acho que dá para funcionar nas duas. Se for a cores, não pode ser aquela cor chapada, tem de haver um contraste puxado, que realce um bocado mais as cores. Se for a preto e branco, também acho que não fica mal. Se calhar não o preto e branco puro, mas sépia. Uma cor assim tratada acho que ficaria bem.
Uma vez concluído o álbum, já pensaste em dar o desafio a alguém, que queira fazer um filme a partir deste disco?
Como isto ainda está tudo um bocado fresco, foi há pouco tempo que acabei o disco, ainda não tive disponibilidade ou tempo para pensar nisso, porque acima de tudo podia ser giro se essa vontade surgisse sem eu convidar, e que fosse a própria música, que ao chegar a uma pessoa, lhe despertasse essa intenção. Mas não quer dizer que mais para a frente isso não possa ser engraçado, porque eu acredito mesmo que as músicas poderão fazer um bom filme e essa ideia, de um filme surgir daqui, pode ser giro, pode ser que mais à frente pense em convidar alguém, mas ainda não está definido.
Há pouco falavas da capa, que é uma espécie de objecto estranho, tudo transparente, dobrada em várias partes.
Sim, a capa vem do conceito de ser… a ideia inicial é a ideia da transparência, e a transparência vem precisamente do facto de, se não há filme, se não há imagens, então também não pode haver cores. Se o filme for a preto e branco, se calhar faz sentido que a capa do disco seja a preto e branco, se for a cores, a capa devia ser coerente com isso. Portanto, se o filme não existe, eu estaria a dar demais se isso fosse para a capa. Então a ideia da transparência vem daí. Depois, perceber como é que um disco transparente podia conter as informações das letras das músicas, dos crédito, dessas coisas, foi toda aquela descoberta, de que o verniz em cima do acetato estaria lá mas não estaria, ao mesmo tempo. Todo o desenvolvimento do conceito vem dessa ideia, de que tinha de ser transparente mas não queria que fosse vazio. Porque, se o disco já tem coisas, se houve alguém que fez as músicas, então faz sentido que quem compre o disco tenha essa informação.
Outra coisa que chama a atenção, os títulos das músicas. Todas elas, números, mas por extenso.
Serem por extenso, foi quase uma questão prática, ou seja, se já vais numerar de 1 a 8, porque são 8 músicas, pôr o número da faixa e à frente outro algarismo, ficaria esquisito. Os próprios títulos das músicas vêm um bocado no conceito todo, quando comecei a fazer estas ideias em piano, não tinha feito só estas oito músicas, tinha feito muitos rascunhos e depois muitos ficaram para trás e outros foram sendo desenvolvidos. E tinha cerca de 25 rascunhos na altura. E como as músicas não tinham título, porque vieram todas de bases instrumentais, eu apenas as numerei de 1 a 25, e estes números foram a ordem em que eu as fiz.
Outro aspecto que causa uma certa estranheza é a falta da “orquestra Noiserv”, aqui és só tu ao piano. Decidiste mesmo fazer uma coisa completamente diferente?
Sim, acho que a ideia foi – eu se ouvir agora o disco de 2013, Almost Visible Orchestra, eu ainda acho que estou naquele sítio, um bocadinho. Não é que esteja há três anos atrás, mas acho que musicalmente, se eu for pegar na minha “orquestra” toda, muito facilmente podia ir para o mesmo sítio. E quando comecei com o desenvolvimento dos tais rascunhos em piano, soube-me bem esta ideia, não me querendo restringir apenas às duas mãos e portanto poder haver loops do próprio piano, soube-me bem este desafio de não ir fazer o mesmo que tinha feito, ou seja, não é fazer uma base e agora ir percorrer todos estes instrumentos e ver o que é que encaixa. Não. Não vai haver outro instrumento que não este, e dessa forma se calhar o disco que venha agora a seguir – que acredito que não seja em piano, embora ainda não tenha músicas feitas, mas acredito que vai voltar à ideia de ter muitos instrumentos – acho que já vai ser diferente. Porque dei tanto espaço ou pensei tanto em apenas um, que se calhar num disco a seguir, os muitos instrumentos que lá estejam, um a um, todos eles serão um bocado mais pensados. Não que isso torne o disco melhor ou pior, porque não acho que o de 2013 seja mau por isso, mas senti esse quase alívio de “vou mudar um bocadinho a forma de fazer as coisas e perceber o que é que acontece”. E foi assim que surgiu este.
E foi mais fácil fazer um disco só ao piano? Ou foi mais difícil, por não teres outros recursos?
Acho que foi mais difícil pelo facto de que as minhas técnicas internas com as quais eu fiz as outras músicas – se tenho uma base à guitarra, então vou buscar este ou aquele teclado e isto vai preencher este ou aquele espaço – como eu quis fugir disso, de repente tinha apenas um tipo de som, que é um piano, para tentar fazer isso. E portanto foi um bocado difícil perceber quando é que a música já estava cheia ou não, porque também tenho sempre aquele dilema de não querer que a músicas seja simples demais, porque quero que ela me preencha os ouvidos de tal forma, como as outras preenchiam. Portanto, de que forma é que apenas um timbre, do piano, me consegue satisfazer os ouvidos? E acho que essa busca, não é que tenha sido muito mais difícil, mas foi diferente dos três discos anteriores. E aí acho que tenha sido um desafio mais intenso, esse início. Depois, os processos de mistura e de masterização acabam por ser mais simples, porque há menos pistas para misturar, portanto essa parte técnica é um bocado mais simples.
Como é que nascem estas canções, escreves em pautas ou vais criando logo ao piano?
Isto nasce sempre a tocar. Mas mais uma vez, nasce da ideia do loop, nasce de uma pequena base em piano e a seguir ponho outra linha de piano, embora mais tarde até possa tocar aquilo só com duas mãos, se calhar quando fiz foram cinco. Portanto, depois de a música ter aqueles pianos todos separados, há uma desconstrução de novo, para perceber como é que ao vivo, embora estando a recorrer aos loops na mesma, consigo tocar aquilo sem ser linha simples.
Outra das grandes diferenças neste disco, além de deixar de lado dezenas de instrumentos, é cantares em português, pela primeira vez em disco.
A questão da língua a usar foi um bocado consequência das músicas. A primeira linha melódica que surgiu, cantada por cima do piano, não sei explicar bem porquê, fez mais sentido as palavras em português, a forma com elas se juntavam, e o inglês pareceu-me sempre muito mais rígido. E não gosto muito quando os discos misturam músicas em português e em inglês, e quando comecei a fechar o conceito da coisa, de ser tudo ao piano, já tinha um pequeno rascunho em português, se assumidamente já sei que isto vai ter muitos temas instrumentais, porque é que os outros não poderão ser em português? Depois, lá está, foi mais um desafio diferente. Não é que cantar em português seja mais fácil ou mais difícil, é apenas diferente. E portanto, fazer o disco todo em piano sem recorrer aos outros instrumentos, era um desafio diferente, e fazer uma letra em português também era diferente. E de repente, parece que aceitei esses desafios todos diferentes e aquilo me deu um gozo enorme.
E gostaste mais de cantar – e de ouvir-te cantar – em português?
Não sei. Acho que é mais complicado tu ouvires-te cantar em português. Não é por estar melhor ou pior, é que durante tantos anos ouvi-me cantar em inglês, de repente parece que estranho o português e que embirro com todas as sílabas, tudo parece que chateia um bocadinho mais. Quando estive a gravar, às vezes havia uma pequenina coisa que me chateava e tinha que ir regravar aquela sílaba. E em inglês, parecia que era tudo mais fluído e que nunca nada me incomodava. Isso não sei se é por ser mais difícil ou apenas por estar mais atento, a todas as palavras, o português é tão directo que de repente parece que notas todas as falhas ou ligeiras hesitações.
No dia 10 de Novembro vais apresentar o álbum no São Luiz. Vai ser um concerto específico, só com este disco?
Não, vai ser uma mistura. Até para não marcar esta ideia de mudança ou de projecto paralelo – porque eu não sinto como uma coisa paralela, sinto que no universo dos discos que fui fazendo, fez sentido fazer este – e até para se sentir esta união entre este disco, embora seja diferente é feito pela mesma pessoa, faz-me sentido que depois de duas músicas ao piano surja uma com 60 instrumentos, e que isso possa fazer sentido às pessoas e até a mim enquanto estou a tocar. Então que elas façam todas parte do mesmo universo, embora diferentes. O concerto será isso, tocar as músicas novas, mas nunca deixar de tocar as outras, porque o universo é todo o mesmo.