Chegava sábado e com ele a última vez que as multidões de pulseiras nos pulsos ultrapassavam a entrada do recinto para mais um dia cheio de música e animação no Parque da Cidade. É verdade: parecendo que não, avizinhava-se o fim do festival, e a promessa de nomes como Air, Moderat, Chairlift ou Ty Segall and The Muggers no dia de fecho garantia aos festivaleiros a certeza de acabar em grande.
Enquanto Cate Le Bon experimentava o Palco ., os portugueses Linda Martini abriam as festividades no palco NOS, conseguindo o feito de serem os únicos músicos portugueses a pisarem o palco principal em todos os três dias. Mas num festival que trouxe os sempre actuais Sensible Soccers ou até os aventureiros White Haus, apenas nos podemos perguntar: porquê tamanha regalia? Os quatro já se encaixaram num grupo de elite musical há tantos anos que o seu valor para a música portuguesa nem chega a ser questionado; e ao assistirmos ao milionésimo concerto igual ao anterior, à promoção do disco novo que cada vez menos importa, à mesma interação público-palco, à mesma guitarra preguiçosa, à mesma bateri armada em grande… Linda Martini num palco principal há cinco anos talvez faria sentido. Mas a sucessão de dejá-vus em palco já cansa, e talvez seja hora de um pequeno intervalo.
Se Pedro Geraldes e companhia deixaram o palco maior menos que morno, os americanos Algiers trataram rapidamente de o incendiar. Franklin James Fisher, o carismático vocalista, revelou-se irresistível e obrigou quem o viu a abanar a cabeça nem que fosse um bocadinho, apesar do calor abrasador que se fazia sentir. Com a sua marca única que funde o melhor do gospel com o melhor do post-punk, trouxe uma onda de energia e boa-disposição à pequena enchente que ocupava a colina verdejante diante de si. De deixar um sorriso na boca e os braços doridos de os agitar ao sol.

A noite já ameaçava chegada quando um grupo respeitoso de gente chegou ao palco Pitchfork para ver uma das maiores promessas musicais do ano – Car Seat Headrest, banda de hinos de lamúrias e constrangimentos adolescentes e de jovem adulto, liderada também ela pelo jovem adulto com ares de adolescente Will Toledo. E a profecia, pelos vistos, cumpre-se, sendo que o concerto dos quatro rapazes americanos revelou-se um dos mais surpreendentes de todo o festival.

Will Toledo não é uma estrela de rock. Franzino e pálido, entra em palco a medo, e os óculos por vezes ameaçam estatelar-se aos seus pés quando se inclina sobre a guitarra. Mas gente como Will Toledo é talvez o que falta ao mundo do indie rock: uma dose perfeita de constrangimento e timidez, sem grandes manias ou tiques, simples, humano como nós. Ao longo da duração do concerto o público entregou-se ao seu rock caseiro, de letras inteligentes, solos barulhentos, coros a dar vontade de estádio e a sua voz sincera e polida, a-lembrar-um-Julian-Casablancas-a-lembrar-um-Lou-Reed. E de que forma. “Are you guys drunk?”, inquiriu a determinada altura o vocalista, tão surpreso quanto agradado, ao verificar que aqueles que se chegavam mais às grades gritavam a plenos pulmões todas as palavras que saíam da sua boca. Foi um concerto de futuros hinos da futura banda que vai salvar todos os adolescentes que querem saber música mas não sabem por onde começar, como “Drunk Drivers/Killer Whales”, “Vincent” ou “Times To Die”. Foi bonito.
As nuvens negras cobriam a noite caída de mansinho quando os primeiros acordes de “Venus” englobaram o recinto num clima denso e sedutor. Fala-se, claro, de Air – o misterioso duo francês que ocupava agora o Palco NOS contava, sem dúvida, com uma das maiores multidões de todos os concertos do festival. O reportório passou por todos os caminhos possíveis, no que foi um concerto composto e sem margem para erro, recordando mais de vinte anos de carreira. Não faltaram clássicos como “Cherry Blossom Girl” ou “La Femme d’Argent” – faltou apenas, talvez, aquele delicioso solo de saxofone na versão ao vivo da “Playground Love”. Nós perdoamos.

Por fim, é quase crime nos dias que correm terminar um festival sem rachar umas cabeças numa variante qualquer de Ty Segall (podendo). E podendo, lá se vai. Já passava da hora prometida quando um mar de ombros ansiosos se reunia diante do Palco . ocupado por Ty Segall and The Muggers, o mais recente projeto de uma das maiores vedetas da cena de rock psicadélico americano. E claro que nunca desilude: deu para entornar as energias todas diante do palco, onde os membros da banda se apresentavam vestidos a rigor, de macacões de várias cores, e Ty Segall segurava, a certa altura, um sinistro boneco de fraldas que mais tarde atirou para o público. O tufão de guitarras e baterias ensurdecedoras passou por temas do disco do projeto, Emotional Mugger, assim como algumas faixas mais antigas de outros projetos, como “Thank God For Sinners” ou “Finger”, fechando com uma versão de “L.A. Woman” dos Doors.
Para quem ainda não esgotara as energias no moche de Ty Segall (ou nos energéticos Moderat, que fechavam as atuações no palco principal), havia ainda Shellac, Royal Headache e Port Romeau a manter vivo o palco Pitchfork. Para outros, chegava a hora de ir para casa e despedir-se de mais uma respeitável edição do NOS Primavera Sound. As pequenas falhas que talvez pudessem ser encontradas ao longo dos três dias e quatro palcos foram obliteradas pela enchente de qualidade, desde momentos inesquecíveis com alguns dos maiores gigantes da música alternativa (e não só) como novidades promissoras a manter debaixo do olho. Foi bonita a festa, pá. Para o ano há mais.
Fotografia: Sofia Mascate